quarta-feira, 29 de maio de 2013

Impressões sobre a Sagração

A Sagração da Primavera faz cem anos de sua primeira apresentação, em Paris.Foi um marco na história da música e do balé.Música de Stravinsky, coreografia de Nijinsky, cenários e trajes de Nicolas Roerich.Este último foi quem recolheu o material visual e sonoro(ícones, pinturas, trajes camponeses, canções folclóricas russas) para que os dois primeiros construíssem o balé.
     Já faz décadas que ouço a Sagração, morrerei ouvindo.A primeira vez que vi uma encenação sua foi no exterior, numa coreografia de Béjart.A de Nijinsky só vi em filmes. Achos as duas maravilhosas, distintas;
 a primeira mais estática, cheia de movimentos angulosos, paradas, a segunda mais dinâmica e gestual; parecem se complementar na expressão da música selvagem e rítmica de Stravinsky, um contraponto entre o apolíneo e o dionisíaco através do universo coreográfico.
      Imagino o escândalo que a música de Stravinsky com  a coreografia de Nijinsky devem ter causado na platéia,  o público acostumado aos maneirismos dos rituais clássicos do balé da época.Ainda hoje são coisas modernas, atuais, causam estranhamento.A sensação de beleza, a estesis dos gregos, apenas aumenta com sucessivas audições da obra.Um universo musical e plástico inconfundível na sua estrutura geral.
     Como dizia o filósofo alemão Adorno, o público rejeitava o moderno , suas dissonâncias, por não aceitar as próprias dissonâncias criadas nas pessoas pela  modernidade.
     Quando da apresentação da Sagração, havia muito interesse sobre o primitivismo de culturas ancestrais,pelo folclore de países de outros continentes, pelo exótico de outras culturas que não a tradicional européia; daí que o material folclórico russo era tão apreciado, seus exotismos tão degustados, daí o sucesso de balés como o Pássaro de Fogo e Petrusca.Mas poucos esperavam algo tão radical como a Sagração.Golpe de gênio de um compositor jovem.Música genial, coreografia, idem.Cenários e trajes fora dos padrões da época, nada parecido com o balé da época.Um tema: um ritual de morte, evocando as forças primitivas da natureza em danças ritualísticas, uma tragédia sombria anunciada desde o início.Nada romântico, nada adocicado.
    Pode hoje não causar escândalo, já que estamos familiarizados com toda essa maravilhosa história do balé moderno, de Béjart a Pina , mas tudo começou ali.Qualquer pessoa, amante ou não de balé e de música de concerto, não deixa de ter uma reação de estranhamento ao ver uma encenação da Sagração.
    Eu me lembro claramente da primeira vez que ouvi o balé integral, ainda lá pelos meus vinte e poucos anos de idade. Conhecia trechos dele, já que sonoplastas frequentemente os usavam  na tv ou no cinema.O impacto foi monstruoso, das maiores e mais estranhas emoções estéticas que experimentei até hoje.Aquela música furiosamente estranha, planos e quadros rítmicos se sucedendo numa atmosfera de ritual(na verdade, um ritual de morte!), mexendo com o interior das estranhas, uma música que irresistivelmente me concitava ao movimento, uma vontade maluca de voar dançando no espaço com as cordas estridentes, os sincopados ritmos dos metais, as percussões mexendo com a epiderme dos nervos, uma vontade de renascimento como o próprio ritual do roteiro do balé  apresentado. O que é, afinal, um grande impacto estético senão um renascimento?
     Vida e morte, assim é a Sagração.Vivemos e morremos, pelos sentidos, durante sua audição.Mesmo levando em conta que a genialidade construtiva de Stravinsky dispôs, com engenho e habilidade, uma série de materiais e canções folclóricas russas de acordo com uma estrutura musical que se pautava pelo ritmo( por sinal,a única coisa natural  em qualquer música, de qualquer gênero), não podemos deixar de sentir o crescimento de algo violento dentro de nós, a libertação de um bárbaro escondido sob a capa civilizada dos bons modos e costumes que nos permitem viver em sociedade mas, ao mesmo tempo, nos privam de algumas felicidades instintivas naturais.Isso tudo sublimado pelo poder da música, da instrumentação, uma complexidade racionalizada expressando a irracionalidade, um milagre da inteligência  e da sensibilidade. Eros e Tanatos harmonizados pela imaginação humana e sua apreciação. Expressão do mundo moderno pela música: assim é a Sagração.Polirritmia, aspereza, politonalismo, uma solução intelectual servindo-se do barbarismo.Hoje, torna-se um tanto difícil enxergarmos a Rússia primitiva que está por trás desse denso tecido musical, mas está lá; a Rússia pré-cristã, pré-eslava, a antiga Rússia dos povos citas.
    Identificamos essa música com toda maquinaria ensandecida dos tempos modernos, essa maquinaria e tecnologia que serviria tão bem as forças da destrutividade humana na primeira guerra mundial.A Sagração da Primavera foi o prelúdio de um grande inverno de morte e destruição que começaria um ano depois das ensurdecedoras  vaias que tentaram interromper sua apresentação. O sacrifício final da dançarina seria, no futuro, o sacrifício do soldado desconhecido nas trincheiras  imundas da guerra.E, claro, tudo isso perfeitamente entrosado com a angulosidade dos movimentos da coerografia nijinskiana, grupos de bailarinos movimentando-se em eurritmias meio mecânicas,  efetuando desenhos no palco,  organizações de movimento meio bárbaras, movimentos estranhos e sincopados dos bailarinos, como se estivessem sendo arrastados para a gravidade natural dos corpos em direção à terra para, no fim, tudo isso culminar na dança final sacrificial da bailarina, resistindo morrer mas, enfim, sucumbindo às forças naturais de extinção da existência, dançando até a própria morte.Simplesmente divino, como devia ser divino ver Nijinsky dançar(ele não dançou na Sagração, restringindo-se apenas a feitura da coerografia).

    Só vendo, só ouvindo.Quem viu sabe do que falo.Quem ama balé não escapa da paixão pela Sagração.Como dizia o esteta Herbert Read, “se o século vinte tivesse que ser lembrado, no futuro, por uma única obra de arte, esta seria a Sagração da Primavera”.

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