sexta-feira, 17 de abril de 2015

Sobre poema de Mário Quintana: as mortes que somos nós

Somos muitas mortes num só ser que somos nós.O tempo se apresenta como uma distensão estranha de fatos e a convivência nos faz atravessar estranhos infernos que se constroem pelas insensibilidades alheios, punhais afiados devassando nossa carne de sonhos e ilusões.Daí que nos obrigamos a reconstruções cotidianas ,pelo trabalho anônimo de tantos algozes insensíveis ao que somos ou queremos.Se o mundo não é talhado para preencher nossas vontades, pelo menos poderíamos preservar a vontade de sonhar com um mundo em que nossa vontade se fizesse voz.Mas então surgem os "outros", a soma de todos os equívocos com que nos enredamos na busca de preservar alguma chama que seja algo mais do que o simples cotidiano, a estranha chama que faz a vida ser algo mais do que sonho de presente, uma ânsia de futuro.

Com a palavra o poeta.E os poetas, esses guardiões do futuro, dizem melhor do que qualquer outro


De Mário Quintana

A primeira vez que me assassinaram


Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

terça-feira, 7 de abril de 2015

Uma gripe e a alma

Passeio entre parques e ruas, algumas cheias, outras desertas.Sombras, que minha consciência diz serem pessoas, pairam nas calçadas, rastros do sol que são, enquanto este parece estourar como uma bolha amarela no alto do céu.Tudo é forma enredada por um silêncio absoluto, na turbulência furiosa que não se aquieta na cidade.Penso em sair daqui, disso tudo, longe dessas mazelas mesquinhas de cotidiano que me infernizam, esperando que  o corpo melhore, a alma alivie.Assola-me uma gripe indigesta, dando-me a impressão de  que vou morrer.A doença é sempre uma sombra, suspiro ou suor da morte que se apodera de nosso corpo, nossas tripas parecendo não ser nada mais que matéria votada à decomposição.Como pode?Como pode toda essa matéria frágil virar, por exemplo, algo de beleza num corpo feminino?Sei não...Vontade de não estar mais aqui, sonhar com um mundo além desse aqui, tão preso, encastelado em paredes e muros sombrios de melancolia escorrendo como limo em paredes cinzentas como certas tardes de outono.Lá fora, o ruído conduzido pelas sombras de sempre.
   Aqui, dentro de mim, da sala, do quarto, no paredão esculpido nesse cordão sanitário de sentimentos alheios, fico pensando na vida, na morte, na gripe, que poderia inclusive me abrir um caminho para  a morte.Ou seja, parcialmente morro agora  e nem ao menos percebo.Quem garante que ela, gripe, como uma fêmea desejosa, não avançará de forma irreversível até consumir-me todas as entranhas ou restos de saúde?O vão sonho da ciência não explica todo acaso.Essa gripe não passa de um pedaço de morte que parcialmente grudou na epiderme de meu ser.Sou pele e órgãos asfixiados pelo ritmo da natureza que anseia por me devorar.Por dentro, apenas um estranho calor a me devorar, mais ou menos localizado no lado esquerdo do peito.Sempre esquerdo, sempre gauche na vida...ou na gripe.No fundo, minha alma permanece sempre gripada.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Reflexão do dia

A vida derrete as asas que a alma cria.Ícaros solitários, sonhamos alcançar um sol distante mas próximo ao coração, na turva fé de sentir o calor, arremessados, por fim, à frieza da solidão.A queda sempre se sobrepõe à escalada; na imaginação, tal Sísifo, sonhamos ver a rocha virar poeira sob o eterno esforço. Ah,  bichos teimosos que somos todos...Com isso nem Deus contava!

Indecisão(curto poema)

Servo estranho de minhas aflições
vou cultivando o avesso em que me esculpi
esperando alvoradas que provavelmente não surgirão.

Tudo se desfaz
na fúria serena de todos os elementos
as vísceras acesas sob a gravidez da morte
no grande abatedouro de sonhos em que o mundo se transforma
e transporta
além desse cotidiano 
nas margens espessas do desejo
a esperança fria do belo,
o tácito sonho do amor
o acalanto turvo de vozes dissonantes do infinito.

Acho que preciso fazer a barba
antes que todas as ervas tomem a iniciativa do mundo.

momento de descrença

E há aqueles momentos em que parece não termos amigos e sim apenas conhecidos.Pegamos uma agenda(algo meio fora da moda) ou a lista no celular, com o teclado varrendo os nomes na memória, uma vontade de ligar para alguém, no fundo sentindo não confiar em ninguém.Pensamos: talvez o problema não seja os outros e sim apenas eu mesmo.Tudo parecendo um reflexo de espelho, uma realidade que vemos mas está de um outro lado dessa vida, um avesso dessa realidade que observamos, vemos mas descremos.Podemos fazer coisas, sair por aí, buscar alguma forma de contato, aquém da alma, além da alma, além das frases feitas de sempre, a resposta pronta na língua: sim, tudo bem, vou indo, tudo beleza.Mas aquém do que se sonha enquanto beleza, incomunicabilidade na excessiva comunicação disponível.Ou talvez tudo não passe de ilusão, as próprias amizades, no torpor  de suas presenças de convívio.O que sou, além do mero sonho de comunicação do incomunicável, no grande festim de conveniências sociais, tão inconvenientes para as necessidades mais fundas, além do álcool, da diversão e do sexo seguro- se é que sexo pode ser seguro, podendo abrir as portas do céu ou do inferno- nos vasos incomunicantes com que se tece o grande retábulo do mundo social.

     Sim, momentos estes  que passam, e passarão, como o vento passa, como a simples água turva que se observa aflita correndo na sarjeta da rua, na sarjeta da própria existência.Tudo tão banal e podendo se encher de tanta grandeza, a fragilidade de tudo, do corpo, do coração e das relações.O mundo, o lá de fora, parecendo pequeno demais para a vastidão do outro, aquele aqui de dentro.