Se as lágrimas sinceras e derramadas por uma mulher, durante um velório, não conseguem ressuscitar um morto, então deixo definitivamente de acreditar em ressurreição.Em verdade, nunca acreditei nisso.Será?
A moça chorava de forma tão compungente sobre o cadáver que - juro! - quase percebi o olho cerrado do morto piscando.Pensei: foi ilusão.Em seguida: assombração? Não: ainda não consigo aceitar bem a morte, seja a dos outros ou a minha.Claro , dos outros cuja a ausência desse mundo considero uma perda para nós.Ah, somos mesmo egoístas!Somos insensíveis à morte de tantos, tão poucos nos comovem. Eu mesmo já segurei alça de caixão de pessoa que não conhecia.Também dormi com pessoa que não conhecia, um tipo de variação fúnebre de caráter sexual.Mas um morto é sempre uma realidade estranha, irreal.Quanto mais o tempo passa, mais passo a pensar na morte; talvez porque a margem entre o eu estar agora aqui e o eu ser nada amanhã seja mais estreita hoje do que há vinte ou trinta anos atrás.A morte não é mais uma abstração para mim, nada vejo de romantismo nisso. Não é abstração, é putrefação.O resto é silêncio.
Quero viver, mas a vida soa com frequência como uma cacofonia insuportável.Há a beleza, os bons momentos, menos frequentes que o tom morno do dia a dia.Aí alguém morre e, pronto, baixa o medo do nada, do silêncio eterno que parece, solidariamente, nos irmanar ao silêncio maior do universo que nos envolve.É a hora que vejo como viver sem acreditar em deus ou coisa parecida é barra!
E penso: o que o morto pensava em seu último momento? Quase morri duas vezes e não me lembro dos pensamentos que passaram por minha cabeça naqueles instantes.
Havia uma moça que conheci na juventude.Era um doce de criatura, uma pessoa que eu julgava muito boa e com a qual me engracei em certo momento sem, contudo, que houvesse nada entre nós a não ser uma bela amizade.Fiquei uma época, alguns poucos anos, sem vê-la quando, numa ocasião nos cruzamos numa papelaria e eu, afoito com alguns problemas, fingi que não a tinha visto.Ela percebeu mas eu deixei estar.Alguns anos depois, perguntei a amigos comuns sobre ela e me disseram que havia morrido num acidente de carro. Ela era jovem, pouco mais de trinta quando de sua morte.
Até hoje nunca esqueço, nunca esquecerei, a ausência de cumprimento naquela tarde da papelaria.O que se faz, o que não se faz, é o que se faz dessa vida.Tenho guardado um poema de Drummond que ela copiou e me deu de presente, depois de umas flores a ela enviadas por mim.Falava o poema de um poeta que carrega a dor do mundo no coração. Copiado em letra bonitinha de moça, aquela caligrafia de escola, um pouco rígida, um pouco doce, assim como ela mesma o era.Enfim, se foi, já há algum tempo.Por fim, naquela tarde, ninguém me avisou que seria a última chance de a ter visto.
Não sei se consigo guardar toda a dor do mundo em meu coração.Mas a vergonha de minha atitude, essa está impregnada nas paredes dele até o fim de meus dias. Nunca conseguirei consertar a descortesia.O que se faz, o que não se faz; assim se perde a vida. O que eu sentiria se, por acaso, tivesse ido ao velório dela ou visitasse seu túmulo? Confesso: isso me dá medo.
E há os que vão a velório e se recusam ver o corpo do defunto.Tanto faz: o morto já não jaz ali, está transformado em memória...ou esquecimento.Nós somos memória e esquecimento.
Posso jurar que, depois de vê-las chorando sobre o morto, as lágrimas já secas, fora do recinto onde se velava o corpo, que aquelas mulheres pareciam luminosas...de pureza.Não consigo deixar de me espantar com mulheres até em velórios.Não consigo deixar de me espantar com esse espanto.
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