quinta-feira, 9 de julho de 2015

Nota sobre necrologias afetivas

Há alguma coisa estranha que identifico como uma espécie de necrofilia emotiva em relacionamentos antigos, sejam eles simples amizade ou amor. Pegue-se dois amigos que há muito não se encontram , ficam os dois a trocar enxurradas de novas informações e, de repente não mais que de repente, está um deles lembrando de algum evento específico vivido pelos dois, aquela moça que conheciam e que fez aquilo, aquele momento de bebedeira,  recordações sexuais de cunho duvidoso, relembrança de antigas mentiras que um contava para o outro como sendo verdades(e ainda teimando em afirmá-las como verdadeiras)coisas assim e assado, um nó no tecido do tempo , o mesmo tempo que já lançou os dois para muito longe daquele nó. Como bem disse Rubem Braga numa crônica, saímos do campo da amizade e entramos na necrologia. Afinal, os dois que viveram aquele nó não existem mais, talvez exista certa matriz física e emocional que, datada de muito mais tempo atrás, tenha feito, junto com o acaso, aqueles dois tecerem o nós. Matriz, por sinal, já desgastada pelo uso natural, pelo desuso natural também. Mesmo indomável, a alma também envelhece.  O passado é como um país estrangeiro que visitamos, onde falávamos a língua nativa e a esquecemos, onde se perderam todas as rotas de viagem para lá, uma viagem feita sem bilhete de retorno. A tendência de apego ao passado é tirânica, talvez fruto de fixações neurótico afetivas, tema muito bem estudado por psicanalistas ao longo da história, coisas da infância, etc. Tudo envelhece a passa, apenas os momentos de plenitude nos dão a vaga ideia de eternidade, coisa que não é feita para nós humanos, apesar de todo esforço da ciência. Como os relacionamentos humanos sempre se desenvolvem dentro de uma nau em constante adornar que chamamos destino, não é leviano afirmar que todos temos vocação para náufragos em nossas próprias vidas. Procurar antigas amizades às vezes me lembra o desesperado aceno do náufrago que enseja alcançar alguma ilha de consolo contra a solidão. Esquecendo que o estranhamento é  tônica dominante, procuramos a identificação em fatos mortos, em imagens de figuras mortas- ainda que fisicamente vivas- que podem ser antigos amigos ou amores. No mundo moderno, torna-se mais fácil essa “arqueologia histórico-emotiva” através de redes sociais ou coisas assim. Mais fácil ser detetive hoje que nas épocas do inglês fumando cachimbo. A tecnologia facilita mas não aproxima necessariamente as pessoas. A imagem, a imagem é sempre algo menos do que se imagina.  Se não relativizamos o passado corremos o risco de afundar no lodo impreciso de injunções fatalistas ou demoníacas.As pessoas se cruzam e se perdem, fica o momento, o resto sempre um conjunto de lembranças, metamorfoseados em nossas próprias emoções, nunca poderemos ter o esplendor vivido no passado porque o passado sempre é um cadáver do qual   mantemos os ossos, o futuro um conjunto de possibilidade e apenas uma certeza, depois de pagarmos nosso tributo a Caronte.
     No cinema sentimental funciona o mito de antigos amores revividos.Ainda não se descobriu, no entanto, a técnica de ressurreição que deixasse de produzir zumbis com algum cheiro estranho.
     Todo mundo que já sofreu por amor imagina que aquela dor será eterna. Ledo engano: eterna mesmo-relativizando, como sempre o termo, pouco afeito a realidade material humana- será a neurose que produziu aquela estranha fixação numa dor. O romantismo talvez não passe de uma patologia, onde aprendemos a lidar com as causas, sintomas, efeitos, dentro de um quadro que, idealisticamente e ilusoriamente, pode ser desenvolvido de forma pragmática. Pode ser que tudo não passe de ilusão e neurose; pode ser que a atração e repulsão, medo e identificação, alegria e sofrimento, tudo isso chamemos de amor. Pelo menos de um tipo de amor. Ou neurose, sei lá. Para tal coisa existem vários institutos médico-legais de ordem psicológica, religiosa, etc. Cada um se ajeita como pode. Nada é eterno, muito menos sentimentos que se dissiparam  fisicamente de forma fácil, muitas vezes transformando prazer em dor e vice-versa, tendo em vista tanto  sado masoquismo espalhado por aí.
    Por isso, talvez não se ame algo ou alguém eternamente por impossibilidade de dilatação temporal( na nossa dimensão, não em outra relativisticamente concebida).Podemos sim amar, eternamente, o amor que tínhamos por algo ou alguém. Mas isso mesmo deixa de ser amor se não virar outra forma de amor, da maneira que for possível. Senão a morte, habitando tudo inclusive nosso interior, vem e toma conta de tudo.E passamos, além de cultivar zumbis, a nos transformar em autênticos zumbis- tecnocratizados, se diga, a bem da verdade-,  mas tão primitivos como os de sempre.
    Por certo, a única verdade, além da morte é o mistério que carregamos até nosso silêncio final.