terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A pequena Eva

E eis que surge a pequena Eva
doçura e fogo recolhido ao mel das estrelas
serpenteia o umbigo do mundo em sua pele
harmoniosa delicadeza nas formas ao espaço
um triunfo do feminino na aspereza cinza do mundo.
Quem é que insinua, flutua
no espaço baço esse seu talhe de mulher
encantando no mundo: bem me quer, mal me quer...
E quem não quereria?
Decantando do negrume das coisas
esse feitiço, serpente ela mais forte e duradoura
que os astros silenciosos sob a flauta encantadora.
Ela que é o triunfo da espécie, a todos os animais imporia sua
vontade, de si tudo aquilo que se resume a verdade.

Mesmo a serpente não teria todas as maçãs do mundo
a adoçar todos os lábios desejosos sob sua visão
Perdição, de ver a beleza confirmada
como o amor que triunfa sobre a morte
quando o espanto nos reduz
às insignificâncias dos deuses e da sorte.
Eternidade de ter
essa beleza enclausurada para sempre em meu olhar.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Noctívago por vocação

     Não tem jeito mesmo, sou um noctívago por vocação; boêmio, ocasionalmente por opção. Talvez minha única e real vocação.A noite, o ruído silencioso que envolve a escuridão ou as luzes noturnas, as figuras noturnas, tudo isso me fascina.Tanto faz que esteja em cidade grande, campo, praia.Nada contra a luz solar, nenhuma neura com relação a câncer de pele.Simplesmente uma questão de afinidade. Uma criatura da noite é o que sou. Um zumbi com tendências vegetarianas, ainda que eu tenha dificuldade com dietas à base de frutas.E quanta dificuldade para fazer coisas de manhã, quão pouca disposição para tal, exceto para certas funções biológicas ligadas à continuidade da vida ou da espécie.
     Sempre me julguei um pouco severamente a respeito disso, por vezes me auto-acusando de tendências insalubres.Claro que sempre pesou  o fato de não ser lá muito dorminhoco.Apenas o normal, umas seis horas diárias,  mais do que o suficiente.Além de oito é como se tivesse passado por um estado de coma.A máquina só "desperta" mesmo depois das onze, meia noite.Faço programa matinal apenas quando estritamente necessário, uma penitência.Afinal, por que museus e coisas afins não ficam abertos durante a madruga?E olhem que fui professor de segundo grau por muitos e muitos anos; aulas matinais, um calvário para mim.Um sonâmbulo dando aula.Adorei meu antigo período ginasial , quando as aulas eram de tarde.Faculdade de manhã, isso sim era outro calvário.Só funciono para aula de noite ou fim de tarde.Como seria minha vida se vivesse no polo norte?
     Talvez isso me tenha levado, além de certas preferências estranhas de cunho estético e filosófico, a ter um certo fascínio pelo estranho, pelo irreal, pelo universo simbólico da penumbra desfeita em consciência e sensação.E, obviamente, a um fascínio pelas pessoas de espírito "meia-noite".Daí meu fascínio, quem sabe, pelos azuis ultra-mar profundos, pelos azuis da prússia  cavernosos, pelos azuis de Chagall e pelos violetas estremecidos e transcendentes ou pelas penumbras poéticas baudelairianas.Por exemplo: toda mulher que me fascina parece que veio direto da Lua, toda beleza dela parece algo desprendido da Lua.Ainda que toda mulher desse tipo sempre nos queime pior que o sol. Mulher que não nos queima não existe.Traços e traços de chamuscar nessa vida...
     Outro dia, um conhecido de muito tempo me diz que frequento ambientes "insalubres".Não entendi direito o que ele queria dizer, depois aferindo que se referia a certas vivências menos convencionais ou desregradas. Embora eu não seja tanto um desregrado tanto quanto um desregulado.Aí me lembrei dos tempos de "racionalidade" de academias universitárias, ambientes de discussões teóricas ou políticas, de outros ambientes de política institucional, da convivência com "lideranças" políticas institucionais, das reuniões em sala de cafezinho durante pausas em empregos institucionais e outros habitats humanos(?) em que convivi.Cheguei à conclusão de que, depois de passar por tanto tipo de insalubridade normal, prefiro mesmo a insalubridade anormal.Tem vezes que passo na frente de um sanatório de doenças(?) mentais, olho a porta dele e fico pensando o que ela está separando do quê.Afinal, aquilo é entrada ou saída de quê? O livre arbítrio me diz que cada um escolhe a insalubridade que lhe convém.O problema é quando essa insalubridade é imposta de fora. Eu acho que no fundo essa conversa é que não é muito salubre.Coisa de discussão noturna, de conversa jogada fora.Coisas da noite, esse meu habitat natural, já que o inferno é o habitat natural de todo mundo.Mas a noite sempre nos salva...ou não.E isso já virou jargão.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Artista bom é sempre artista sério

     Bom artista é sempre insatisfeito.Na arte, resignação com resultados não é boa coisa.Em relações humanas pode ser mais conveniente.Afinal, não podemos manipular relações ou pessoas como fazemos com escritos, desenhos, etc.Somos feitos à imagem e semelhança do altíssimo(não seria o contrário?) mas temos lá nossos limites.Porém, quando fazemos algo com seriedade temos que colocar a alma no que fazemos.Assim como no amor, a arte também envolve um sacrifício, sendo sempre um duro ofício, a arte o amor, o amor à arte, o amor ao amor.No fundo somos todos um pouco funcionários públicos marcando ponto.A rotina que nos faz vivos e, por vezes, faz saltar uma luz na escuridão  no meio do sempre igual, do estranho tédio que enxergamos fundo na passiva quietude do olhar animal.Mas como mergulharmos em nosso olhar de animal, todo dia ao nos olharmos no espelho, vendo o lento trabalho que a morte faz, cotidianamente, para se usar a bela imagem de Jean Cocteau?Dentro da vida criamos mecanismos que nos levem além dessa própria vida.E a carne, a matéria e o sangue disso tudo é o sonho.Todo homem é um sonho, frustrado ou não.Ou muitos.Sem sonhos, já estamos mortos, esperando o decurso de prazo.E haja arte para resistir a isso tudo.Mesmo que tenhamos consciência de que somos, eufemisticamente, "meia-boca".
     Visito meu amigo, artista jovem, antes que o ano acabe.Ou mesmo antes que o mundo acabe, sabe lá...Como todo artista sério, ele demonstra inquietação e dúvida com o que faz.E ele faz um bom trabalho.É a sina de quem leva qualquer forma de arte a sério: questiona sempre o que faz, se o que faz corresponde às suas possibilidades.Não importa, o importante é fazer.Do jeito que der.Ser coerente com uma "verdade" interior, um privilégio se pensarmos em como somos manipulados por formas de alienação dessas nossas potencialidades interiores.Aí eu acrescento algo, ao dizer a esse meu amigo que ele faça seu trabalho como a criança com seus brinquedos.Já viram como uma criança é séria com seus brinquedos, tão centrada em torno deles?E mesmo assim se diverte.Não é à toa que passamos tanto tempo, às vezes, em busca de algo perdido na infância. Toda criança me parece um artista, em potencial.Com o tempo as engrenagens civilizatórias podam potencialidades, mas alguns resistem, por acaso, por genética, por puro mistério....Crescemos, envelhecemos em busca de um retorno a algo que se perdeu em algum canto, quiçá no útero...Daí surge o amor, o sonho , a arte. Apenas essa vida não nos basta.Nada nos basta.E bom artista é sempre um cara sério, mesmo quando palhaço.E o palhaço para mim é a máxima imagem de seriedade.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

No ano novo, salve seu sonho

     O que seria um projeto para um ano novo?Ano novo, sempre a mesma coisa de todo ano velho que passou.São as convenções que mantêm acesas as esperanças.Faz parte da dimensão humana.No choque com a realidade, a coragem surge sempre de uma ilusão que criamos para nós.Essa ilusão pode virar realidade porque, praticamente, tudo se cria a partir da ilusão de que a realidade pode ser criada a partir do que projetamos enquanto sonho.
     Considero-me um sonhador, antes aloprado, agora levemente entediado. E um tanto ridículo, em função do teor de minha idade.Mas que fazer; pelo menos foi uma vocação que não deixei de fomentar.A maior parte dos sonhos me fez dar com os burros n'água.Tudo bem, faz parte do jogo.Não vou recorrer a nenhuma instância arbitral metafísica.Ah, tanta fragilidade a nossa nesse universo!Como é que pode haver tanta gente com tanta certeza?Esse tipo de pessoa me dá medo, confesso.Será que sonham, elas que para mim são um autêntico pesadelo?
    
     Todos os sonhos do mundo não seriam suficientes para um só homem.Na vida, ausência de dor já é sorte; só percebemos isso quando perdemos as coisas.Principalmente se elas caíram de graça em nosso colo.Somos cegados pela realidade.Estranho, não?Pode ser que só "enxergamos" mesmo quando sonhamos.Afastados da própria realidade que nos conduz.E enxergar vai além do simples ver.Claro que nada disso nos livrará de nossa condição inelutável de solidão no mundo.Devemos para isso, assim como fazemos para com tudo nessa vida, desenvolver um aprendizado da solidão.Talvez ser sozinho seja a melhor forma de não se sentir sozinho. E sonhar a única forma concreta de encarar a realidade, tão absurda esta que até parece abstrata.Quanto mais nos sentimos afastados de algo, mais oportunidades temos de captar a essência desse algo pela observação.A essência em si nunca a teremos, nunca vamos muito além dos limites de nossas sensações e percepções. Por isso, ainda acho melhor o sonho à realidade.Algo perigoso porque a realidade social tem mecanismos de prevenção contra sonhos sem finalidade.E os sonhos sem finalidade me parecem os mais despojados e sinceros.Hoje em dia vive-se a era do sonho programático.Algo tão insólito quanto falar em "utopia possível".Só rindo....De minha parte, minha solidariedade aos sonhadores, utópicos ou não, já que, como bem dizia a mensagem da peça de Calderon, a vida é mesmo sonho.E sonhamos sozinhos.Às vezes os sonhos se cruzam....Como no poema de Pessoa:"Deus quer, o homem sonha, nasce a obra". Por isso, nesse ano que entra- que, no fundo, não é ano novo, já que a realidade e o tempo são uma continuidade que sonhamos como ideia por meio do símbolo- a coisa que posso desejar às pessoas é que salvem seu sonhos.Para mim, essa é minha única obrigação moral e ética, atualmente.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Só a arte fica?

 Li em uma reflexão de Fernando Pessoa que somente a arte fica, todo o resto passando, seja ele império, convicção, credo, estado ou nação.Tem lá sua lógica histórica, apoiada em fatos.
     Particularmente o que me espanta - e a única coisa relevante da vida é a que nos causa espanto, para o bem ou para o mal- é como sentimentos vividos há tanto tempo podem ser reanimados pelo contato com a arte.
    Nunca mais pude ter as mesmas sensações de paixão física, amorosa ou sensorial que experimentei na juventude.Tentar revivê-las me parece um esforço inútil, algo independente de nossa vontade. Aceitar velhice e morte é duro aprendizado.Com frequência repetimos de ano ou, pior hipótese, somos expulsos da escola sem saber.A vida passa e o acúmulo de experiências, sejam elas fracassadas ou vitoriosas, cria uma película que nos transforma em seres afastados de uma certa dimensão de nosso passado, como se o passado se transformasse num tipo de país estrangeiro cuja língua esquecemos em parte, muito vocabulário perdido mas uma certa noção de articulação gramatical mantida.Coisas do inconsciente; afinal, a maior parte de nós é sempre um mistério inatingível, muitos personagens em peças desconexas sem articulação lógica de enredo.Ainda que sempre haja os que se adaptam melhor aos mecanismos de normose,  afastando um pouco as neuroses inerentes.Adaptação ao meio.Coisa bem humana que fez a espécie triunfar sobre as outras.
    Mas o passado é sempre o passado, um cadáver que carregamos em nossas entranhas mesmo sem saber, uma estranha força do sangue com que nos projetamos ao futuro, o qual não existe, a não ser enquanto possibilidade.Enfim, difícil saber como se articula esse acúmulo de sentimentos em nossa ordem presente, a única coisa que realmente há.Óbvio: dispensando, no caso, digressões de física relativística.
   Nunca provarei  de novo aquele "esplendor na relva" de que falava um poeta, varrido pelo vento do tempo e jogado às frias rochas da memória, encrustado como um musgo estranho, ao mesmo tempo repulsivo e fascinante.
   Assim como não terei o mesmo vigor físico de minha juventude, não poderei amar, sentir as coisas como naquela outra época.Sem contar que o império dos hormônios tem data para sua auto-extinção.Talvez viver não passe de uma forma de descobrir novas formas de amar.É o que nos resta, a se contrapor às forças do ódio e da extinção da vida que estão ao nosso redor e mesmo dentro de nós.
    Mas eis que, outro dia, ouvindo uma sinfonia que já ouço há décadas, repentinamente me vi embriagado numa atmosfera de encantamento, mistério e angústia que em muito me lembrava o que sentira há décadas atrás.Sou eu, ouvindo e sentindo isso agora, renovando dentro um cadáver escondido nas memórias sentimentais?Não sei, acho isso muito misterioso.Como se estivesse em contato com a alma do compositor, assim como tantas vezes percebi algo que talvez pudesse chamar de alma em tantos quadros, canções ou poemas.O milagre da arte que consegue manter vivo uma espécie de chama, uma chama que a vida em nós criou e se acendeu num momento de contemplação artística e ainda se mantém viva.Todo o resto se foi, para nunca mais.
   Sim, não nos banhamos duas vezes na mesma água do rio.Se é rio, a água corre, se não corre não é rio, é o lago da morte.Nada é eterno, tudo passa, sonhamos com a eternidade, sonhamos a eternidade mas temos os braços curtos para as tarefas, o coração se endurecendo e a mortificação das esperanças se insinuando pelas artérias de nossa vontade.Tudo conspira contra o sonho.E o ser humano é um grande sonho.Quem sabe, um soluço no meio do universo.
   Mas para  nosso ledo engano, vem a arte e dribla tudo.A arte nos traz o sonho de eternidade, tanto para quem faz como para quem recebe o que é feito, mesmo de forma imperceptível.
   Durante uma hora voltei a ter meus vinte e poucos anos.Passou.Sobrou o sonho de eternidade que voltou a se instilar em meio aos sons.Milagre de voltar no tempo através do mergulho em sensações perdidas.
     Só mesmo a arte para consertar esse calhambeque que é a vida.Mesmo que ele só rode até a próxima esquina.É : só a arte fica e dura, porque somente a arte é.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Chega de falar mal...de mulheres!

 Já abandonei  faz tempo o vício de falar mal de mulheres, tanto quanto o que não me esforço mais em explicar em mim o espanto pelas variações da Lua.Sinceramente, o problema não é mais o sexo mas sim o que no outro é de mim anexo.Certa serenidade até pode ajudar a quebrar o velho grilhão da carne; ainda que com suas limitações, já que recidiva e gripe nova nunca faltam.Mas aquele blá-blá-blá rancoroso, reflexo da frustração constante, disso quero mais me livrar.Canso muito- em verdade não canso tanto, senão nem ao menos me daria ao trabalho- de ouvir homem e mulher falando mal um do outro, independente mesmo dos caprichos de opções sexuais e, como todo ser social humanizado, sempre me fraternizei com esse comportamento de lamúria discursiva.Chega, não mais, basta!Tenho que usar então o que desenvolvi de raciocínio abstrato para transformar em abstrato a concretude maçante.Sem cair numa maçada.Óbvio que penso cá com meu zíper se essa bobajada toda vomitada pelo cotidiano de nossas conversas não nos faz aguentar as torpezas da vida, o envelhecimento, a sombra da morte, a bestialidade da rotina.Vai saber...
     Será que se fala tanto mal em função de alguma busca de mitificação?Afinal, em eras de calendas gregas, os deuses se esbaldavam em futricas e ardis lá pelas bandas do Olimpo.Falar mal seria uma compulsão?No fim, tudo vira silêncio e esquecimento.Como na peça: tanto barulho por nada.Mas as serpentes devem, em conversas íntimas entre elas, se questionar como os humanos conseguem com linguinhas tão curtas fazer escorrer tanto veneno.Claro que o papo da maçã foi discriminação contra os répteis.
    Que bom: pelo menos não falamos mal das árvores.Até dos bichos de estimação-namorados e amantes inclusos- fala-se mal  com frequência.
   Ontem a Lua estava linda e derramava prata pelas sombras da sarjeta.Hoje está mais fraca, quem sabe amanhã suma de vez sem dar satisfação.Mas não vou dar queixa dela para qualquer síndico do sistema solar; afinal, a Lua faz o que quer, aparece ou não segundo suas fases, cada uma meio louca, meio previsível, um pouco como cada mulher ou minha cara no espelho de manhã.Não vou falar mal da Lua porque os elementos do cosmo não se ajeitam com meu temperamento satúrnico...ou soturno.De forma que, racionalmente e pelo princípio da isonomia, vou estender de vez a prerrogativa a todas as mulheres.Mãe não conta porque mãe não é mulher, nem humana: é entidade.
    Por fim, vou criar um pouco de vergonha na cara e por a mesma de cara com essa verdade: a de não mais justificar a frustração pela falação.Talvez funcione, talvez não.Mas espero que me tratem democraticamente.Ainda que eu saiba que laconismo não é lá muito comum em mulher, imagino que algumas venham a silenciar sobre as tempestades inócuas que as vezes criamos.Porque tanto falar sobre o que não podemos explicar?
  Por isso, chega disso de falar mal das mulheres.Raios , que eu me esqueci da vida!Sem contar que tenho material de sobra para auto-crítica, esse exercício cotidiano de cinismo com que embalo meus sonhos frustrados e minhas raivas ocultas, bem maquiadas para a solicitude nossa de cada dia.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

retrato de briza(pintura)

Retrato de Briza

óleo sobre cartão
Fiz de memória.Talvez nem pareça com ela mas sinto que tem o ar dela.Em todo caso, minha preocupação maior era a integração da figura com a paisagem de fundo.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

amor e espanto

De fato, como dizia Rochefoucauld, o amor é como o fogo, não continuando se não o alimentamos.Claro, existem fogueiras e fogueiras, alguns incêndios incontroláveis. Existe até mesmo a fogueira das vaidades, um exemplo desmesurado de amor próprio.Mesmo aquele foguinho artificial de tomada deixa de mandar calor quando não se paga a conta de luz.E tudo tem lá seu preço.Acho que qualquer forma de amor -e não vou me restringir ao plano sexual, ainda que acredite que todas as formas de amor a esse plano se ligue ou dele promane , direta ou indiretamente- implica em alguma privação de liberdade.A liberdade é sempre um conceito particular que pode englobar outras formas conceituais universais; em suma, é algo abstrato, embora a privação de liberdade seja algo bem concreto.Envelhecer, por outro lado, implica em descobrir novas formas de amar.Condição inevitável da situação humana.A outra face da moeda, o oposto da morte, a qual prevalece se não mais amarmos a vida; algo fácil de acontecer.As forças de extinção da vida estão por aí.Matar ou morrer é mais fácil do que viver, mais de acordo com os princípios da entropia.Um relacionamento se constrói aos poucos, às duras penas, podendo ser desfeito em segundos.Uma só palavra e nós ou a Esfinge, alguém cai pelo precipício.
       O amor tem falhas?Ou todas as falhas são falta de amor?Não sei...No dia a dia, o tempo passando rápido como um raio desesperado cortando os céus,  tudo é frágil, perde-se tudo de uma hora para outra, saúde, paz, coisas, pessoas, amores.Só nos resta resistir enquanto houver forças.
    As pessoas não morrem de uma vez.A presença física delas sim, as lembranças vão-se aos poucos.Vivemos com os mortos e coisas mortas, mesmo sem saber.Tudo isso implica em pânico cósmico, mas disso não temos como escapar.A sombra de um sonho, é isso o que somos, a isso nos restringimos na jornada curta até se pagar o tributo a Caronte.E do outro lado do rio, quem sabe haverá coisas a que se chamam amor, mais duráveis e menos complicadas das que estão por aqui.Por aqui, apenas a suspeita de que vagamos em círculos, procurando em formas de amar, quaisquer que sejam, uma orientação para a criação de significados.Já que a vida, em si mesma, não tem nenhum significado.
   Então, que a fortuna sempre me reserve algum isqueiro no bolso.Continuar mantendo essa estranha fogueira de pânico que me parece ser qualquer forma de amar.Afinal, não passamos de seres espantados.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Uma tarde, uma árvore, uma moça

Ah, que esse silêncio das árvores me perturba tanto quanto o de tantas mulheres.Tantas e tantas árvores no mundo, nunca uma parecida com as demais.Cai a tarde e me quedo contemplando uma, frondosamente silenciosa à minha frente, galhos imponentes e folhagem multifacetada de tantos verdes quantos os amores que deixamos escapar por entre as mãos.Silêncio de tarde quente, quebrado apenas pelo murmurar distante de jovens, refestelados em gramados próximos, na imposição natural da força dos hormônios.Mas minha consciência, ou o que resta dela nessa tarde de aflições contidas por um silêncio cósmico e celeste, já se perdeu por entre as folhas silenciosas da árvore, essa estranha melancolia vegetal  de botânica e indecifrável linguagem, uma greve de vento impondo a mudez como epígrafe dessa tarde quente.Posto isso, encontro, após o susto do celular me roubando ao silêncio absconso, uma moça.Nem precisava do recurso do  satélite: simples sinais de fumaça fariam-me encontrá-la.Em seguida, vejo-a, silenciosa e frondosa, na altivez que apenas a  beleza feminina contém, sentada, sorriso escandido nos lábios, os lábios de mulher que sempre ocultam algum tipo de sol, algo  entre a melancolia e a alegria, mais ou menos como o estranho brilho verdejante da folhagem que antes observava na inquietante árvore.Pouco fala a moça, assim como nada falava a árvore na quietude da ausência de vento; o silêncio conduz sua presença, delineado pelo talhe de sua figura.Conta-me algumas aflições suas, mais ou menos como, provavelmente, aquela árvore me contava as dela, numa língua vegetal que talvez nunca eu  venha a dominar.Vendo a árvore pensava na morte.Vendo a moça -que fazer!- sou obrigado a pensar na vida.A sua tristeza silenciosa me perturba, mais ou menos como o fazia aquela árvore. A melancolia das árvores, a branda tristeza das mulheres.Aquele lapso de momento na existência, em que tudo se reduz a dois seres: a moça e a árvore.Entre as duas , uma similitude: frondosas e belas.Unindo-as , o inexpugnável silêncio que envolve todos os seres, humanos ou não, no furioso ruído cósmico que nos envolve.Onde estariam as almas das árvores, onde estariam as almas das mulheres?Quem sabe, imersas no calor daquela tarde.A moça me sorriu; teria a árvore sorrido para mim?Quem sabe, uma eternidade seria pouco para o tanto de tempo a se desenhar tanto uma quanto a outra.
     Caiu a noite, a sombra roubou o verde das folhas, a sombra da distância roubou-me a presença da moça.E minha alma, quem sabe perdida no interstício de espaço e tempo entre a árvore e a moça.A moça partiu, enquanto olho a árvore esquecida nas sombras da noite que chega e pressinto algum ciúme por parte de tão nobre e altivo vegetal, algo que de alguma forma me envaidece.
O silêncio das árvores sempre me perturba.O silêncio das moças sempre me perturba.Esse silêncio, a grande sinfonia da vida.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

"Ah, você por aqui, ainda vivo?!"

"Ah, você por aqui, ainda vivo?!"

Às vezes, ao rever alguém com quem perdi contato há muito tempo, solto essa.Muitos já me recriminaram por essa fala, acusando-a de mau gosto, de morbidez.Será?
    Talvez isso tenha a ver com o tabu do assunto morte.Mas me pergunto: que assuntos são mais relevantes nessa vida que amor e morte?Freud dizia-se impressionado quanto ao fato de que a maioria das pessoas se dedicam, em conversas, a falar mais de relações afetivas(ou sexuais) e trabalho do que  sobre qualquer outro assunto.Schopenhauer fazia uma aposta com seu taberneiro, ganhando sempre a mesma, de que a maioria dos cavalheiros que sentavam nas mesas contíguas à sua, dificilmente falariam de outro assunto que não fosse mulheres, negócios e...cavalos.Questão de época.Parece que hoje predomina sexo e trabalho.Mais trabalho, pelo visto, até entre mulheres.Quem diria... Em todo caso, na curta passagem nossa por este espetáculo furioso e sem sentido que é a vida, atuando em papéis certos ou errados numa peça absurda escrita por um louco(só mesmo o grande bardo inglês para definir tão bem a vida!), todo mundo tem relógio com hora marcada com a velha senhora.Cada dia ganho é perdido.Um dia a mais na vida que se ganhou, um dia a menos na futura necrologia que será talhada quando não mais estivermos aqui.
    Todo dia pranteio meus mortos, os já efetivados e os que se efetivarão.Depois do cinquenta, parece-me que qualquer tempo a mais já é lucro. Qualquer alegria ou sensação de plenitude ,uma dádiva.Viver sofrendo pouco, então, um divino luxo.E reencontrar alguém, depois de muito tempo, ainda andando e falando comigo, vejo tal coisa como um milagre, tão grande quanto eu estar aqui escrevendo essas bobagens.Tudo é enigma, tudo é incerto e frágil.Daí, vejo aquela minha expressão como um júbilo, uma alegria.Independente, claro, do estado físico da figura revista; já que a vida cobra, o tempo passa e deixa marcas e a saúde é sempre algo em suspenso.Vivo sempre nessa suspensão de pavor cósmico.
    Por isso, não vejo essa minha expressão como algo deselegante, e sim como algo realista.Só morremos de fato e para o mundo quando não mais falam de nós.Mas tudo no tempo se desfaz, tudo tende a ser como o inevitável futuro traçado no discurso de Pessoa no poema A Tabacaria.Morrer é uma forma especial de se estar ausente de tudo, uma insociabilidade forçada, um prolongamento forçado da projeção da sombra que somos.Vivencio os mortos, vivencio os vivos.Viver demais de lembranças é perigoso pois nos atém ao passado, esse cadáver que carregamos ignorando o ranço de mau odor que tem.Mas que fazer: o homem é memória e percepção em ação.Posso achar a vida uma porcaria, mas enquanto houver essa chama estranha que nos faz a ânsia de continuar a vida, de manter a carcaça de ossos deambulando por aí, não fujo da raia.Por enquanto; afinal, não sei como agiria se a velha senhora agora batesse em minha porta.
     Viver e envelhecer, como disse certa vez Stravinsky, é construir um cemitério atrás de nós.Sim, ele já estava velho, então, mas criativo antes de tudo.
   Por isso, bem humorado, continuarei a usar e expressão.Não direi coisas banais no estilo " como está envelhecido", "como está conservado" ou "como não mudou nada".Apenas direi: que milagre você estar aqui!Como é milagroso que sintamos ainda coisas como amor, ódio ou medo da morte, em meio ao enganoso vazio que nos cerca.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Vera Janacopoulos(a desconhecida)

Vera Janacopoulos

Vera Janacopoulos

Vera Janacopoulos, que nasceu em Petrópolis em 1892 e faleceu no Rio de Janeiro em 1955, foi uma das maiores musicistas brasileiras de todos os tempos. Sua carreira concentrou-se no período entre as duas guerras mundiais, durante o qual foi uma das cantoras de câmara de maior destaque no cenário internacional.
Seu repertório se notabilizava por uma grande amplitude histórica, estendendo-se de Machaut a Stravinsky e, por uma rara versatilidade, mestre consumada do “Lied”, era ao mesmo tempo uma intérprete notável, tanto do repertório francês e espanhol, quanto do russo. Poulenc diria que ela era uma intérprete “miraculosa” de Mussorgsky.
Os programas de seus concertos dos anos 20 eram extremamente inovadores, por colocar lado a lado do repertório tradicional, música do período pré-Clássico, música popular de diversas procedências, mas sobretudo por dar um lugar de destaque à música contemporânea. Amiga pessoal de compositores como Stravinsky, Prokofiev, Falla, Villa-Lobos, Milhaud e Poulenc, desempenhou um papel de primeiro plano na divulgação de sua música vocal, sendo responsável por diversas primeiras audições, tendo sido a dedicatária de várias obras.
Sobre a importância de sua atuação, Alejo Carpentier diria: ”Musicista admirável, ... Vera Janacopoulos representou para a música de Prokofiev, H. Villa-Lobos e Manuel de Falla ... o que representaram as cantoras Marya Freund para Schoëmberg e Jane Bathory para Erik Satie e Darius Milhaud.”
Dentre as características mais salientes de seu perfil musical, podem ser destacados:
- o fato de sua formação instrumental haver precedido a vocal, pois estudou, durante anos, violino com George Enesco, que seria o “pai espiritual” de músicos tão diversos como Dinu Lipatti e Yehudi Menuhin, a quem dizia dever seu fraseado e sua maneira de abordar uma obra musical;
- o hábito de “trabalhar” as obras que interpretava com os próprios compositores. Sua autoridade ao interpretar música francesa, provinha do fato de havê-la trabalhado pessoalmente com Fauré, Ravel, Poulenc e Milhaud; a espanhola com Falla e Nin; a russa com Straviinsky e Prokofiev; a brasileira com Villa-Lobos, etc...
- familiaridade com a orquestra, pois são numerosas em seu repertório e fortemente representadas em sua coleção de partituras que se encontra na Uni-Rio, as obras para voz solista com acompanhamento de orquestra, muitas das quais são transcrições encomendadas por ela própria aos compositores, das quais são exemplos o Tilibom de Stravinsky, La rose et le roussignol de Rimsky/Prokofiev, duas árias do Amor Brujo de Falla, Viola de Villa-Lobos e Phydilé de Reynaldo Hahn/Villa-Lobos.
Como cantora com orquestra, foi freqüentemente acompanhada por músicos do calibre de Stravinsky, Falla, Milhaud, Markevitch, Mengelberg, Monteux, Ansermet, Scherchen e Motropoulos.
Apesar de longo período de residência no exterior (a mudança definitiva para o Brasil só ocorreria no final dos anos 30, às vésperas da 2ª Guerra Mundial) e da primeira apresentação pública (1920) ter sido posterior a suas estréias européia e americana, Vera sempre acentuou sua identidade brasileira: a música brasileira foi parte integrante de seu repertório internacional, seja através de melodias populares, harmonizadas por Ernani Braga, seja através de obras de F. Braga, A Nepomuceno, H. Oswald, L. Fernândez, L. Gallet, F. Mignone e, sobretudo, Villa-Lobos, para cuja projeção desempenharia, juntamente com Rubinstein, um papel tão decisivo em Paris, nos anos 20.
Texto de Manoel Correa do Lago, extraído da Revista Brasiliana - no. 7 - janeiro de 2001
Existe um sem número de dedicatórias de compositores famosos, que conviveram com Vera Janacopoulos, demonstrando uma grande admiração pela artista.
”A Vera Janacopoulos, a maior artista que eu conheço e a melhor intérprete de minhas obras”. - Villa-Lobos
"A Madame Vera Janacopoulos-Staal, en souvenir d”une interprétation de mes mélodies Qui m”a causé le plus vif plaisis. Votre dévoué Gabriel Fauré".
"A Vera Janacopoulos, en souvenir de son admirable interprétation du 31/5/1921." - Maurice Ravel
"Souvenir reconnaissant du concert du 23 Novembre, 1924, au Concertgebouwe d”Amsterdam." - Wilhem Mengelberg
"A vous, chère Vera Janacopoulos, més souvenirs très très affectueux." - Igor Stravinsky
"O que poderia demonstrar a vera Janacopoulos minha extraordinária admiração por todos os seus dotes artísticos, senão dedicando estas “Historietas”. - H. Villa-Lobos
"Orquestrée pour Melle Vera Janacopoulos, en considération de sa belle voix et sa charmante interprétation, l"Autheur, NY 1919 " - Sergei Prokofiev a respeito de “La rose et le roussignol”
Citações recolhidas do site www.abmusica.org.br, que constam no no. 2 da revista Brasiliana.

sábado, 9 de novembro de 2013

Bacon e Eu

Francis Bacon foi um dos grandes artistas do século vinte.Mas, além disso, deixou muitas entrevistas dotadas de  uma sinceridade absoluta, demonstrando, ao mesmo tempo, uma refinada cultura não tão comum assim em pintores.Há pouco tempo li uma, onde o grande pintor, já velho, dizia que no estágio de vida dele, naquele momento, tinha perdido a maioria de seus amigos, por morte ou afastamento, sendo que, quando se fica mais velho-segundo suas palavras-, torna-se mais difícil adquirir novas amizades.Ainda mais quando se é uma pessoa difícil de temperamento, como ele se definia.
     Bacon era uma temperamento marginal, um torto na vida,  papel deliberadamente assumido por ele, em função das circunstâncias que cercaram sua existência.Sempre, sempre, como dizia Ortega y Gasset, o homem e suas circunstâncias.
   Dizia que tinha muitos conhecidos de bares, mas quase nenhum amigo.Até parece um pouco com minha vida.Chega um momento em que se cria certo fastio ou desencanto por tudo, algo muito natural.O véu de Maia das ilusões sociais desfeito pelas decepções ou descréditos.Inexorável situação do artista, tendo que se resignar com sua solidão, a arte sendo a única companheira.É meio triste mas pode ser, como dizia Pessoa, que a dependência dos outros seja uma forma de escravidão, por que não?Em todo caso, guardadas as devidas proporções de talento entre o que o grande Bacon foi e o que eu sou, senti-me solidarizado por ele e com ele, em sua declaração.Ainda que na vida dele a presença de tragédias seja bem maior do que na minha, frugalmente classe média, uma tensão constante entre o aburguesamento e a marginalidade.Esta última, quando não física, pelo menos espiritual, algo experimentado por mim desde muito cedo.Ser um torto sem vocação não é fácil.Tentei sempre achar alguma para mim e, não vendo nada de especial em mim, acabava frequentemente buscando os roteiros convencionais, incluindo nisso amores, profissão e casamento.Isto, a longo prazo não funcionaria mesmo.Sobra essa marginalidade "soft", o idealismo como forma de exercer os caprichos de eros, a distância de tudo e de todos.Pelo menos, temos que amar alguma coisa.Bacon dizia amar a matéria que via, que o momento de revelação estética dele se deu ao visitar um açougue.Para mim, pensando bem, foram três: a primeira visita a um prostíbulo(embora nunca mais tenha visitado um depois de minha juventude), uma sinfonia de Mahler e Paris.Mas acho que nisso Bacon teve mais sorte, uma revelação mais precisa.Claro que, pessoalmente, gostaria de ter todas as mulheres do mundo, nesse momento...para pintar ou desenhar.Paris está muito longe, mas a música e a pintura estão sempre aí para deleite de olhos, ouvidos e alma.A vida é mesmo curta, como dizia Bacon(que viveu além dos oitenta), uma só muito pouco quando a vontade é grande.
    Gostaria de ter a capacidade de imersão dele.Mas ele era gênio, eu não.Mas em comum, ambos víamos a vida com espanto e algum horror.Não conseguiria nunca criar o simbolismo de horror que ele conseguiu.Ele dizia que compensava a frequente insatisfação com a vida com seu trabalho.Uma salvação que gostaria também de alçar.
   Sim, parece ser a vida, pelo menos para os que não se enquadraram direito nos scripts postos por aí: solidão, poucos amigos, muitos conhecidos em bares, amores raros(os intensos e verdadeiros são), sorrisos hipócritas e convencionais, bons modos escondendo a turbulência da raiva, bons modos com mulheres(se você preserva seu lado aristocrático), uma pitada de cinismo e ceticismo em tudo que se vê, ouve ou fala.Mas, mesmo assim, a vida é sempre uma coisa urgente para nós. Há os que me acham presunçoso por isso.Dá para acreditar!
   O acaso, o homem e suas circunstâncias, os grandes sonhos sempre resistindo na imaginação.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

pensamentos postados em 4 de novembro

Confesso que sinto um profundo amor pela juventude.Não a minha, já perdida, esvaída por entre as mãos do destino, mas aquela que sempre se apresenta como a terra distante e virginal a ser povoada pela vontade humana.Fica-se mais velho e parece que apenas os defeitos aumentam, não as virtudes, as poucas que cultivamos; um festival de manias e intransigências, apenas acelerando a consciência da inexorável decadência física.Daí é um passo ao rancor universal, cósmico, contra tudo e todos, principalmente os mais jovens.Uma tremenda ausência de humor.Aquele rancor que se esconde de forma sutil nos conselhos, no pouco caso a respeito da precipitação por ordenação hormonal, aquele cultivar do universo cadavérico do passado.E o que é o passado senão um cadáver?Carrego essa múmia dentro de mim, mas não vou usar suas faixar para espantar os outros.Prefiro então a decrepitude de minha  nudez moral ou ética.Mas os mais velhos dirão que ninguém nunca tem ética, que isso é uma abstração e que os jovens nunca sabem disso e blá, blá,blá.Há os pecadilhos de juventude e os pecadilhos- por sinal, não poucos!- de velhice.Que lástima! A envelhecer assim, preferível a morte.Melhor morto enterrado que zumbi fingindo ser a fonte da vida.Em todo caso, um pouco de paciência com erros da inexperiência alheia é como caldo de galinha para doente, não tendo nenhuma contra-indicação.


Então seria mais fácil não amar?Por que então não sentir, no desapego que, aparentemente, nos livraria dos grilhões dos desejos?Não sei, parece tudo meio idealizado, em meio às máquinas desejantes e de desejos manipulados em que nos transformamos ou nos transformam,ainda que seja à nossa revelia.Em todo caso, tudo que se vive, ao se tentar reviver se transforma numa necrologia, o que acrescenta certa dor e melancolia na busca do sentimento perdido. Mais fácil então seria não viver, mas a chama da vida trava luta renhida contra a constante treva da morte.E dentro de nós piscam as duas coisas, nossa alma entre o céu e o abismo, sem contar a aflitiva memória que nos ilude sobre a passagem do tempo, colocando as coisas, eventos e afetos como se tivessem sempre ocorrido instantes atrás, como se as coisas não mudassem.
É, o negócio não é fácil, mais fácil seria a amorfia do pouco sentir, mas isso não dá mesmo.Ou dá, dependendo de como trabalhamos essas necrologias das coisas e desilusões que se forjam constantemente.A vida vem, estúpida- indelicada, a bruta, nem nos pede passagem-, nos atropela quando não esperamos.E se pensarmos nisso tudo, se ficarmos a pensar demais na vida, ela vem e passa e finda. Em verdade, finda com a gente e continua na dela.Talvez esse negócio de amor, qualquer que seja, não passe de um logro que a própria vida nos impõe para que a sirvamos em sua sanha de eternidade.Apenas nós é que não seremos eternos. Salvo contraditório da assanhada e petulante árvore da sabedoria tecnológica, todo dia replantada pela ciência.Mas viver eternamente, para quê?


A vida me parece absurdamente feroz e sem sentido, parecendo ter uma lógica própria que pouco tem a ver com o que chamamos de nossa lógica.Essa , lógica, juntamente com o que denominamos de razão humana, parece se desprender da própria matéria amorfa da existência, construída pelos sentidos e suas impressões, no sentido vão de controlar toda essa amorfia.Tudo e todas as coisas, inclusive pessoas, são construídas como abstrações por meio de nossas impressões.Ou seja, não sabemos de nada, perdidos na fúria incompreensível da realidade.Como um quadro impressionista, tão belo de longe e um monte de borrões ao nos aproximarmos dele.É , as pessoas são mesmo como quadros impressionistas.Mas nem todos os quadros são interessantes ou bem feitos.

     E surge aquele momento em que cai a consciência- quem sabe, o desalento- de que pouco lucramos em nos esforçar  por ser algo que não somos.O peso da máscara incomoda, o gasto com o verniz das convenções não compensa, as cores com que nos tingimos não produzem qualquer acorde que  nos agrade.Talvez, o momento em que nos dedicamos ao nosso maior luxo: o desprendimento.A vida é cinza, a cor nós a criamos pela imaginação.E nela, um pouco longe da ação, sustentamos uma verdade de imprecisão lógica à razão mas não ao coração.
     Já demandei muito esforço no ledo engano de me fingir herói  em aventuras inexistentes e criadas pela mente sonhadora. Não resgatarei mais donzelas quase perdidas- que se percam em seu destino, na própria liberdade do erro- nem colocarei fogo nos castelos infames criados pela infinidade de meus inimigos.Quem sabe a eles, inimigos, frondosas árvores onde os veja enforcados pela minha imaginação, à maneira do poeta romântico alemão que isso almejava ao lado de uma simples casa em bucólica paisagem.Inimigos invisíveis, inexistentes, nenhum maior do que o que se albergou no fundo de meu coração, entrincheirado em medo e covardia.Mas não vou dourar a pílula do falso conhecimento.Chega a hora em que se diz :chega!O mundo não vai se adornar de louros(ou loiras) para saudar minhas falsas vestes rasgadas; mas há um certo alívio em aliviar o crédito indevido com a hipocrisia.Esta cansa um bocado; suas engrenagens sempre engastam, como nossos nervos ou músculos fatigados pelo tempo.

     A vida existe antes da teoria, a sensação antes da ação.Nada impede ação conjunta com sensação.Mas a razão, contudo, às vezes nos inibe no contato com a própria vida.Nenhuma teoria pode ir além da vida, apenas serve para interpretá-la e convivermos com ela.Mas confesso que, depois de tanta teoria decalcada na alma e na mente, tive que me livrar de muita coisa aprendida, como alguém que se desnudasse para se sentir melhor nadando numa praia, em meio à escuridão constante de um céu de indefinições, o brilho estranho e calmo de lua nos dando a esperança de que podemos voltar às areias, mesmo sem roupas.Mas quem é que não teme o afogamento, esteja ou não vestido?
Não existe chicote analítico que dome a ferocidade da realidade.Quando muito o bicho se assusta, mas não foge, não perde as presas.A razão é como um domador de fala baixa e fina.Grita, esperneia, brande o instrumento de intimidação, mas a fera continua sempre livre e solta.No circo da vida, todos somos palhaços de maquiagem ruim e gestos para lá de conhecidos.Até que um dia ele pega fogo...
Outro dia revi um filme de Jacques Rivette, A bela Intrigante.Quatro horas de duração. Aconselho para quem tiver tempo, paciência e interesse.Um filme intrigante e refinado.Feito em 91.Uma profunda reflexão, plástico-cinematográfica, sobre o ver, o sujeito e o objeto, a partir do olhar de um pintor, alter-ego do próprio diretor.Ou sobre o voyeurismo do artista.Ou de qualquer um. Ver é sempre algo inquietante quando nos dispomos a questionar o que vemos, o que se oculta por trás das aparências mas também faz parte delas.Quando você pinta ou desenha, parte do erótico que motiva a observação vira ciência da criação.Toda criação tem uma ciência oculta de leis imprevisíveis, mas procedimentos exatos.O artista, qualquer que seja, é sempre um esgrimista.




variações sobre um tema 1