segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

retrato de tatiana óleo sobre cartão


pinturas terminadas no final de dezembro 2012 óleo sobre cartão autoria de sergio marques











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últimos desenhos pessoas












últimas reflexões de 2012


Entre o amor de caserna e o de caverna, prefiro ficar com este último.A caserna é sempre estável, constante, repetitiva, a monotonia da disciplina, assim como a vantagem  da segurança do teto firme.Bem, muita gente se sente bem com a vida militar, nada contra.Mas prefiro a insegurança das trevas onde se tateia sem se saber para onde se vai.Não só na atitude de ação podemos viver em insegurança, as próprias relações humanas sempre são instáveis e nunca podemos garantir nada.
    Segundo o mito de Platão, o mito da caverna, vivemos nos orientando em meio a sombras.Por se preferir a caverna à caserna, corre-se, verdade  seja dita, o risco de se virar urso solitário.Mas, tal qual o bicho peludo, pelo menos segue-se a própria natureza interior, o privilégio mais ousado e perigoso de nossos tempos.

Não tenho nada contra as pessoas terem suas próprias mitologias. O problema se dá quando se tenta imputar a própria mitologia num outro, sem consentimento deste.Isso é fruto da crença em uma verdade absoluta, quando todas as verdades são relativizáveis, o que não implica que essa relativização impeça a vida prática.Prático mesmo é respeitar os princípios de tolerância.

As teorias marxistas sobre a luta de classe como motor histórico não me convencem mais.Acredito mais que o que move as coisas é a luta entre os adaptados e os inadaptados.Claro que, mantidas certas circunstâncias favoráveis e estatísticas, um mendigo adaptado pode se transformar  em rei, enquanto que alguém favorecido pelo destino econômico, mas não adaptado ao sistema, pode enveredar pela mendicância mesmo sem querer.O sistema pude sempre severamente a discordância quanto às unanimidades que ele chancela.

Converso com jovem mãe, 26 anos, filho de quatro meses, casamento de três anos já em estágio meia -boca - que, certamente, não será reabilitado pela nova criaturinha - mas com aquele deslumbramento amoroso e maternal que só existe nos olhos de uma mulher mãe.Ao saber que não tenho filhos, de forma um tanto ingênua e até estabanada, diz:" nossa!Você está ficando velho e ainda não teve filhos!" Sorrio e respondo:" e talvez nunca tenha, o que não é problema.Sabe, o filho é sempre mais da mãe que do pai, ainda mais hoje em dia, os homens tão enfraquecidos em seus antigos papéis já ultrapassados.Nem todo mundo nessa terra, seja homem ou mulher, irá procriar.Você não se justifica pela sua descendência mas sim pelas suas ações na vida.Nem toda mulher vai ser mãe, ainda que a maternidade seja um fenômeno extraordinário só acessível ao gênero feminino(não esquecer que já existe muita gente dizendo que esse negócio de gênero é totalitário e outras mumunhas de discurso...).Filho é sempre um pouco de acaso, por mais que se planeje.É a natureza agindo independente da vontade racionalizada do ser humano.E este, por mais racional que seja, sempre é um buraco sem fundo de coisas sem razão alguma.Inclusive com a vaidade procriativa, coisa estranha mas que existe...E, particularmente, em minha vida tenho visto tanto pai e mãe que são uma desgraça;  fico até pensando , nesse caso,se o filho(ou vítima) não teria sido mais sortudo se fosse fruto de uma chocadeira.Porque , fosse nossa sociedade realmente justa e racional, haveria preocupação não apenas com a saúde física mas também psíquica das pessoas, inclusive daquelas vitimizadas por paternidades desastrosas.Mas o sistema quer mais é que as pessoas apenas trabalhem e não perturbem.Terapia só para quem tiver grana.

Acho que só é possível se aquilatar sobre o quanto gostamos de uma pessoa de acordo como se vivencia o silêncio ao lado dessa pessoa.Nem sempre o falar constante é um dizer algo.E temos dificuldade em analisar as coisas ocultas entre tudo o que é dito ou desdito.
Quando criança acreditava que o mundo ia acabar no ano 2000, por isso não entendia o filme 2001 Uma Odisséia no Espaço.E o mundo não acabou, nem em 2000 e nem agora.Embora eu concorde com o fato de que muita gente vai continuar sonhando com o fim dele, muitos por já estarem acabados no e para o próprio mundo. Fico lembrando o velho Freud, de suas idéais sobre a coabitação de instintos de vida e morte dentro das pessoas(ideia atacada  por  suposta elucubração metafísica, como se o homem fosse um pensador exato...), e imagino se a ideia do fim do mundo não é uma projeção cosmogônica dos instintos mortais, uma solução simbólica para nossos egos saturados de realidade, de tantos princípios e normas, do amor ao estado e sobrevivência econômica,  organizando todos os afetos e relações com o mundo, com as pessoas, com nosso próprio interior. Se o mundo não é bom com a gente, melhor sonhar então com o fim dele?Ora, se viver em civilização implica em conviver com repressão, então que a civilização vá para o inferno, pelo menos dentro do imaginário de uma justiça metafísica das forças do universo! Claro que isso é mais fácil para quem acredita em deus ou no juízo final, não para quem se vê como vítima de acaso cósmico ou capricho de deuses sádicos que no fundo não existem.Para isso, ou melhor, contra isso , surgem as forças de vida criando essa expectativa ,tão louca e inexplicável quanto coisas como o amor ou a morte, que chamamos de esperança. E o que fazer se a esperança não se situar além das margens do fim do mundo? Ufa, pelo menos - grande alívio! – não vou pegar uma arma e matar criancinhas ou minha mãe!O mundo não acaba, a nossa vida sim.E se o universo vai entrar em colapso e desaparecer, então para quê sonhar em precipitar as coisas, mesmo em imaginação? Bem, ainda temos um pé, ou mais, na idade média...



sábado, 29 de dezembro de 2012

reflexão sobre o fim de ano

O senso comum é terrível, uma forma inapreensível de lógica aplicada sem lucidez às coisas do cotidiano.Sim, é mais fácil viver-se dentro dos limites do senso comum.Ser auto-crítico ou se auto-enfrentar a cada momento é um desafio maior.Mesmo dentro dos limites postos em cima da psicanálise, acho que ela é tão vilipendiada e Freud ainda tão atacado por ser difícil à maior parte das pessoas, independente mesmo da formação cultural,  aceitar que não somos donos de nós mesmos, não temos controle sobre todos os nossos instintos, podemos ser presas de paixões incontroláveis, em síntese, não passamos de uma casca de cortiça flutuando num oceando revolto de desejos e imprecisões.Ainda que com remédios, terapias ou fugas alienantes(consumo, religião, fanatismos diversos...), vai ano, vem ano, e somos sempre os mesmos, ainda que manipulando toda essa parafernália tecnológica que só crescerá inevitavelmente.Por isso, só mesmo na formalidade uso essas coisas de feliz ano novo e tal.Prefiro um "sorte no futuro" - e se for de coração, melhor ainda! -, coisa que, inclusive , deveria ser invocada em cada encontro com qualquer conhecido querido, seja em primeiro de janeiro ou trinta e um de dezembro, siga-se o calendário que for, romano reformado, chinez ou asteca.Afinal, queira-se ou não, sempre estamos no mesmo barco, rememos ou não.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

parente sem saber...

O que faz a gente gostar tanto da obra de alguém, um ser distante e inacessível, vivo ou morto, mas tão próximo do que somos, a ponto de quase vê-lo como um parente?Há sempre a obra que nos causa a sensação de beleza.Dizemos: que belo!Há o que nos causa espanto, quem sabe o essencial do belo, e dizemos:nossa, espantoso!Mas há certas coisas, feitas por nossos semelhantes, que nos tocam dimensões tão recônditas da alma ou do coração, que não hesitamos, ao lembrar de seus criadores, de dizer, para longe dos credos, nacionalidades,partidarismos , familismos impostos pelo medo e pela solidão, particularidades de grupo ou gênero, além de todos os conceitos e preconceitos, dizemos apenas: meus irmãos! Quantos irmãos de alma que se foram, nem conhecemos , mas ainda vivem dentro de nós.Os mortos sempre estão conosco, tanto quanto os vivos, os quais, com frequência e insensibilidade, os tratamos como mortos-vivos.

catarses e catarses

Acho muito interessante esses momentos de catarse coletiva.É a hora em que se afirma a necessidade de diferenciação por credo, nacionalidade, gênero ou qualquer bobagem parecida.Para se diferenciarem, as pessoas são levadas a se identificarem com grupos e comportamentos, num atavismo grupal  quem sabe remanescente de nossa memória pré-histórica.Seja numa comemoração de time ou show musical, um ritual mágico-coletivo-religioso para se sentir pertencendo a um todo maior além dos limites de nossa individualidade egoísta-narcisista.Mas a situação torna-se complicada quando não conseguimos nos sentir integrados a algum grupo.Ainda que , no fundo, a individualidade extrema seja uma tolice, já que cada ser humano, qualquer que seja, faz parte de um tecido orgânico-social e mesmo material bem maior, além do que ele é, mais ou menos como uma célula inconsciente nesse misterioso organismo, sempre doente e se recompondo, chamado humanidade.Não consigo bem me lembrar do nome, mas um escritor já comparou nossa vida com a de uma célula num todo maior.De forma que não haveria como deixar de fazer ou sentir algo sem que um outro sentisse o efeito em algum outro ponto do mundo.É uma visão humanista, a humanidade como um todo, o todo agindo como uma dinâmica que tem a ver com a humanidade.Realmente só somos humanos quando participamos desse todo.Somos vaticinados  à condição de ser social.E o resto é sempre histeria.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

criação e sofrimento


Ninguém nasce  pronto um criador.A criatura faz-se criadora e com isso se recria.

    O cinema, convencionalmente e para atender a um certo gosto médio de publico,  com frequência trata os personagens de forma idealizada, sem contradições ou com conversões abruptas, como se não houvesse sempre um processo envolvido por trás de qualquer transformação. O sofredor genial é bem um exemplo, ignorando com isso toda um avanço nos estudos da psicopatologia e criatividade, parâmetro banalizado no estilo " a criação só vem com a dor", quando melhor seria dizer que ela vem com a dor inclusive.
     Essa idéia cristã, presente em muitos filmes de cinema, associando sofrimento a criatividade me causa muito enfado.Acho que Nietzsche, esse adversário visceral das religiões, e em especial do cristianismo, concordaria com isso, ele que tanto odiava as estéticas do sofrimento, amava tanto as estéticas da busca da energia mais profunda da existência dentro do mistério do coração humano, enxergando a busca da felicidade trágica como vocação humana, o homem como um herói em potência na própria luta contra as impotências.Não que o processo criativo, qualquer que seja, não implique em sofrimentos e percalços, não que os criadores não possam passar por sofrimentos, ter a vida crivada por sofrimentos.Mas a criação se dá, apesar do sofrimento.Algo que se dá além dos parâmetros de senso comum de vida ou morte, numa visão cosmopsicológica quase que inconsciente dentro de todos os seres.Se o criador atua no sentido de resolver problemas psicológicos pessoais através de sua obra, esta não é feita apenas por isso ou para isso, mas por uma necessidade de transcendência do próprio criador em relação às limitações de sua vida, no sentido de "corrigir" a vida pelo poder da vontade humana, humanização esta da realidade desumana onde nascemos(o mundo, o universo não foram feitos para a felicidade e o bem estar humano), que poderíamos chamar de verdadeira atitude de amorosidade humana para com o universo(e o amor é uma criação humana, e como toda criação, até mesmo aquela que fingimos nos ter feito à imagem e semelhança, é sempre um mistério do qual nos afastamos e nos aproximamos ao mesmo tempo), uma aceitação de um destino forjado pela independência da vontade de consciência, frente a neutralidade inconsciente do resto do universo que pouco faz de nós.Ninguém nasce totalmente criador.A criatura faz-se criadora.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

pensamentos e reflexões de novembro 2012


E vêm aquelas horas em que precisamos derramar lágrimas, mas o choro vai para dentro da gente, como um vento mergulhando no corredor escuro da alma.Para onde vai esse rio de dores, em que oceano de nosso interior ele deságua?Em que recesso interior vai se esconder essa liquidez de melancolia que se furtou de florir do lado de fora do que somos?

Uma amiga minha, muito espirituosa, me diz que  “ se você quiser ter felicidade afetiva, cai fora dessa cidade, porque aqui só tem mulher louca, daquelas que querem tudo e não sabem o que querem”. Eu retruco que “essa é minha cidade, onde nasci e onde me acostumei, que faço então?”; ela não perde o fio e me diz que “essa cidade não te pertence mais!”.Tem  ela razão : muitas coisas já não mais me pertencem, inclusive essas “mulheres loucas” dessa cidade mais louca ainda, local muito diferente da infância que vivi, mesmo sendo bicho de metrópole como sou.Embora eu já tenha me acostumado com todos esses tipos de loucura,tanto citadinos como feminis, inclusive com a minha própria forma familiar e particular de loucura.

Ainda sobre o tema dos botões, um amigo me diz que o problema fundamental da falta de consciência dominante está na descoberta do zíper e do velcro, porque com isso houve uma diminuição no número de botões usados. Tese controversa, claro.Mas, por enquanto, não vi alguém dizendo coisa como  “outro dia, pensando com a tela de meu computador” ou “falando com a tela”.Na verdade, você pode falar com a tela, com outra pessoa, não com ela em abstrato como um objeto sem sentido significante como um botão.O botão é inercial, a tela dinâmica. Mas falar com botões demanda tempo e pouca expectativa de resposta, mais ou menos como o que ocorre com relação à maioria das pessoas que conhecemos, haja tela ou não envolvida no caso. Meio é mensagem, ainda que a maioria das mensagens ainda não tenha encontrado o meio adequado.

Procurei e procurei, em todos os manuais de anatomia; não achei onde ficam os canais lacrimais que usamos quando “choramos para dentro”.Talvez porque nossa anatomia às vezes fique louca e não caiba nos manuais.Por exemplo: existe uma cardiologia dos afetos, além dos fluxos de sangue, das carótidas e coisas assim?

Todo mundo sempre fala "nas grandes dores e sofrimentos" dos grandes artistas.Ninguém fala das dores e sofrimentos dos pequenos artistas.No fundo , são as mesmas, com o fato agravante do não reconhecimento ou do esquecimento.Que fazer: são apenas pequenos artistas.Muitas vezes, o grande nem sabe que é grande, o pequeno se imagina maior do que é.Mas a insatisfação pode contemplar tanto o grande quanto o pequeno talento.Porque o básico do processo criativo é o mesmo para os dois.

   Me envolvi numa discussão interessante com uma amiga sobre tipologia de distúrbios mentais.Ela é inteligente e seus argumentos se baseiam em reflexões envolvendo conceitos psicológicos.Mas sinto dizer que não consigo acreditar nas compartimentações definidas ou em muitos modelos e conceitos desenvolvidos pelas psicologias: hipomania, neurose, bipolaridade, complexos disso e daquilo e tantos nomes outros dados aos bois e outros bichos do pasto humano.São modelos e, como todo modelo, pode ser alterado.Acho que a gente até conhece mais sobre o mundo sub-atômico, que não vemos, do que sobre o sub-humano, que não queremos ver.No fundo, sou partidário de uma idéia que li, em um pequeno texto de Fernando Pessoa, em seu livro chamado Autognose(bem, o título já diz tudo...).Ele defende que todos nós somos loucos; varia apenas a quantidade de loucura e a consciência maior ou menor sobre essa quantidade.Exemplo: se a pessoa tem alta dose de loucura e nenhuma consciência sobre isso, seu destino é mesmo o hospício; alta consciência produziria genialidade; por outro lado, baixa loucura e inconsciência disso implicaria na mediocridade(o que, segundo ele, seria o mais comum de se achar).Se o fulano tiver pouca loucura e for consciente disso, poderá ser um frustrado.Bem, a partir disso,não  podendo quantizar a loucura,poderíamos estabelecer um “quantum delirius”, uma nova grandeza de medida de loucura que poderia, por exemplo, ajudar no currículo Lattes ou nas seleções de emprego.Oh, “Brave new world”!

Um ser humano é um conjunto de possibilidades, a arte sendo uma delas.Todavia, não se explica totalmente um homem por sua arte, apenas uma parte significativa do que ele é ou poderia ser.Para alguns, a folhagem mais rica e cheia de flores, mas ainda não sendo o tronco.Essa imagem acho que retirei de alguma reflexão do meu amor Paul Klee.

Van  Gogh não era um “virtuose”, não nasceu com o dom de desenhar ou pintar como um Picasso ou Toulouse-Lautrec. Tanto que começou tarde na arte, beirando os trinta(no século XIX , isso era considerado muito tarde).O que me causa espanto não é tanto a carga emocional, afetiva e amorosa, dolorosa,passional,uma generosidade imensa exposta através do colorido e da forma colocada em suas pinturas, mas o fato de, num prazo curto e às custas de um enorme sacrifício de estudos e desenhos(milhares e milhares, perdidos em sua maior parte!), ter desenvolvido recursos técnicos auto-didáticos, a ponto de ser considerado um dos renovadores do desenho moderno, além de ter aberto , junto com Gauguin e Cézanne, caminho para a pintura moderna.Milagres da vontade humana!Como diz uma letra de canção do Chico Buarque: “amar é iluminar a dor, como um missionário”.Tudo a ver com esse pintor.

Experiência interessante:sábado fiquei horas passeando no meio da multidão, jovens em sua maioria: confusão, ruído- um tanto álcool, outro tanto hormônio-, aquela barafunda toda dos demônios que envolve um microcosmo, esse particular que sempre encerra um universal.Pescando uma fala ali, outra aqui, uma briga cá ou acolá, ouvidos abertos tanto quanto os olhos.Mais ou menos como a  situação dos anjos daquele filme , "Asas do Desejo".Aliás, seria até bom ser um anjo, fugindo um pouco das caceteações diabólicas e egoístas do cotidiano.Tem o problema de que os anjos são assexuados.Será?Ou seria apenas uma versão de anjo?Em todo caso, é fascinante  ver tanto caos e sentimento disperso pela multidão.Pouco entendemos disso tudo, mas acabamos por nos entender  com esse tudo.Ou ,pelo menos, nos solidarizamos com isso.

Passa o tempo e descobrimos que nossa vida é um cemitério de afetos, por onde peregrinamos com flores murchas- esperançosas quem sabe-, à procura de uma tumba esquecida. Mais o tempo passa, mais as tumbas se confundem, o cemitério vira um grande descampado e nos esquecemos nele, no próprio esquecimento que tudo é.

     Tarde quente, sol indecentemente derramado pela tarde.Uma longa caminhada; a moça que caminha ao meu lado é jovem e bela, advinha-se uma guirlanda de esperanças e possibilidades em volta dela, tanta coisa ela ainda pode fazer nessa vida, se a morte e sua detestável corruptibilidade não a roubar dela.Mas certamente  não roubará,também tenho lá minhas esperanças: irei antes, felizmente, me poupando de ver o universo um pouco menos bonito.Ela me conta coisas, desde a infância até suas inquietações de momento.E toda essa esperança que pode se realizar, apesar de tanta ansiedade sendo esqueleto do mundo.A moça caminha sob o sol e o universo está aberto para ela, a esperança em sua matéria aérea, bem longe dos conformismos que a tudo petrificam, inclusive a própria alma na dura lida do cotidiano.Acho que a vida vale por momentos assim, a beleza e juventude caminhando sob o sol.Que ainda nem é o “ sol de dezembro” mas o de novembro.


Aí, uma moça, beirando os trinta, me pergunta sobre o que acho da geração dela.Respondo que não faço mais juízos sobre isso, já que desconfio de todos os meus próprios juízos, atualmente; mas desconfio que a geração dela, assim como a minha e outras que a precederam, têm uma coisa em comum: a vocação para o fracasso.Os pais de hoje têm tanta dificuldade de comunicação com os filhos quanto os meus tiveram comigo, principalmente a partir do momento em que perdem o controle econômico sobre eles.Avançou mais a tecnologia, inclusive a de comunicação, do que a comunicação humana, naquele estágio que podemos chamar de aprofundado.Desconfio até que o sistema, tal como é montado em seu funcionamento, nem quer muito que haja uma ampliação dessa comunicação.Claro, melhor do que em outros séculos, porque os direitos se ampliaram, a tolerância também, ainda que haja muita intolerância.Essa se faz mais presente contra os que não seguem os roteiros.Sobram as bebedeiras, as loucuras programadas e o consumo.Isso ainda é pouco.E fico pensando nos futurólogos que falam na singularidade, um estágio no futuro em que homem e máquina serão uma só coisa.Talvez sem pais, famílias ou mesmo comunicação.Ou não.Quem sabe?Não tenho muito certo, para mim, dos limites entre o possível e o impossível.

Só queria saber para onde vão as lágrimas quando choramos “para dentro”.Em que manual de anatomia se explica como agem esses invisíveis canais lacrimais, onde ficam , como são?Lágrimas que vão para dentro são como um rio que nasce próximo do mar mas teima em ir para o interior, para dentro da “terra dos homens”. E duro e áspero é o choro para dentro; não é choro de líquido e sal, mas de rigidez e metal. É um choro de silêncios pedregosos, daqueles que pesam na alma como pesos que carregamos morro acima. Em que ventrículo do coração escondem-se aquelas lágrimas que deveriam ir para fora, agora empoçadas e criando mosquitos, desilusão e desalento.

Ah, essas minhas mãos teimosas, mal educadas! Andando pela rua, elas abanando sem sentido e reclamando: onde está aquele corpo que envolvíamos ou por ele éramos envolvidas, numa hora em que nós, agora mãos desviventes,  tanto nos sentíamos mãos vivas? Mãos aflitas que passearam pelo paraíso, agora presas a este solitário corpo. “Não é justo!”,  reclamam essas malcriadas mal traçadas mãos.

Um conhecido meu tem uma pequena livraria, no saguão de uma faculdade de ciências sociais , na USP.Toda vez que a estudantada se reúne no espaço, reclamando contra autoritarismos, burocracia, polícia no campus, um monte de coisas, com discursos aparentemente esquerdistas e politizados, esse meu amigo reclama, reclama e reclama.Já tem idade, por muito tempo foi militante do antigo pc, agora transformado nessa coisa que é o pps, além de usina fornecedora de alguns tucanos de sucesso, mais do que petistas.Diz ele, com a rabugice de quem diz ter-se livrado das ilusões: como podem esses jovens falar e defender tanta besteira, falar de revolução e mobilização das massas, etc,etc.E reclama, reclama...Eu então lhe pergunto: que autoridade moral e ética tem você para julgar o comportamento deles?Pergunte-se sobre quanta coisa idiota e sem sentido você defendeu ao longo da vida, você , um cara que defendeu uma coisa como a União Soviética , por exemplo, já apodrecida e longe dos sonhos de liberdade revolucionária.Silêncio.
   É, parece ser o destino da maioria dos que conheci naqueles tempos, principalmente dos mais velhos que eu: a rabugice, a desilusão, o acomodamento na vida medíocre, o espiritual voltado para o essencialmente material, a luta pelo hediondo poder pragmático das políticas institucionais, e por aí afora, coisas piores. Por isso, faço questão de  não rever meus antigos companheiros, camaradas ou comparsas, salvo um ou outro com que mantive amizade, essa bem mais importante que qualquer convicção política(amizade,o maior dom do homem , segundo Montaigne).Eu gosto do meu amigo livreiro, mas para envelhecer assim, prefiro morrer mais cedo.Afinal, a vida não é mais nada que uma sombra...Ou sobra de uma juventude morta totalmente, em alguns casos.

Picasso disse, de uma certa feita, que nunca acabava uma pintura, apenas assinava no fim para evitar uma falsificação.Talvez as pessoas sejam como essas pinturas, sempre um processo em andamento.Claro, muita gente, como muita pintura, não passa de falsificação, algumas até baratas.Depois de algum tempo, um retoque aqui ou acolá, ou vem algum tipo de restauração;algumas emboloram,  outras apodrecem, outras vão para o museu(ou se tornam museu ambulante), a maior parte das pinturas, como ocorre com a maior parte das pessoas,  esquecidas.Ou olhadas com indiferença, como o que ocorre  em vista de visitantes apressados.Entrar numa pintura ou numa pessoa(claro, psicologicamente falando...) exige um pouco de trabalho da sensibilidade.Mas a vantagem é que as pinturas, assim como os cachorros, nunca reclamam se fazemos pouco caso delas.

E aí, adentrando a passagem do tempo, na “curva perigosa” da maturidade –ah, que maldade! – pode-se derrapar num amor.Ai que dor, ai que dor! Exercita-se a razão para se domar a emoção, mas tanta sublimação só dá mesmo embromação. Um animal agonizante ainda uiva, uma lâmpada ainda dá um brilho estertorante antes do filamento virar resíduo. De algumas coisas já abri mão, definitivamente, de entender. Arte, filosofia, sabedoria e tantas outras coisas para driblar o imponderável. O roteiro geral da peça é mal escrito, “fábula contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando absolutamente nada”, como dizia o autor de Hamlet.Erudição ou verniz para polir o instinto bruto, a animalidade que nunca se perde completamente. Estetizar tudo para se atribuir um sentido a tudo que se sente? Por que não?Sem contar o faz de conta de que morte não chega ou não existe, apenas em acontecimentos como velórios ou enterros. Só os outros morrem? Podemos sofisticar a ilusão, mas isso não implica em solução, quando muito em dissolução de mentiras que não encaramos. Essas questões e dilemas “outonais” são mesmo de difícil solução, no meio de um mangue afetivo que se situa entre o otimismo primaveril  e o pessimismo invernal(ou seria infernal?). Mas, que fazer?  O amor, tanto quanto a morte, não marca hora ou, pelo menos, o relógio onde se marcou a dita cuja se perdeu em algum canto inacessível; sem contar que quase sempre estamos atrasados e já perdemos o metrô da história(porque não se usa mais bonde), a bateria( a nossa ou do relógio, tanto faz) já foi pro brejo e não há recarregador disponível. No fim, a mesma correria atrás de coisas que começamos a perder desde do início, sem que venhamos a perceber. E vamos tocando, vamos tocando...Apesar das derrapagens, o negócio é rezar para que haja acostamento.

Um grande problema na vida é quando esta se transforma num hábito. Eis um problema que surge, a partir do momento em que tudo assume o status banalizado de se escovar os dentes. Podem surgir os métodos artificiais, as "paraisações" dos paraísos artificiais(em nossa época, acrescem-se os virtuais).Mas as melhores soluções paradisíacas surgem mesmo da imaginação, inclusive daquela que imagina a inexistência do hábito.Mas lidar com as rotinas é sempre um caminhar sobre a navalha, uma navalha sem fio; ao contrário daquela que se enfrenta em estado passional, esta cortante ao extremo.Mas temos que sangrar um pouco para continuar a vida.Aliás, as mulheres que o digam...



Céus, como é espantosa a capacidade de uma mulher mentir de forma convincente!Homens sempre serão amadores nisso: em geral, na hora de engatar uma mentira, produzem uma forma de hiato de resposta estimulada, denotando um vacilo perceptível por pequenas marcas de expressão, interrupção na fala, olhar débil(uma mulher, senão todas, a grande maioria, consegue mentir com um brilho cristalino no olhar.Fantástico!).No telefone, então, homens  são uma desgraça maior;a voz perde precisão, a não ser que a mentira seja ensaiada ou o fulano seja um mentiroso profissional, no caso , um ator.Ah, "o dom de iludir", realmente um dom!Durante décadas pensei que mulheres mentissem pouco por viverem mais no "universo" do emotivo, vendo a mentira como um ardil da cavilosa razão.Como sempre ,não fui lá muito bem com questões práticas, um pouco por ingenuidade, um pouco por burrice mesmo,  caindo, um pouco com honra, um pouco com vergonha, em muitas falácias.Por segurança, hoje vejo todo mundo como mentiroso, inclusive eu mesmo, mais comigo do que com os outros.A mentira tem função prática, de sobrevivência civilizatória, exceto na arte que, por não ter utilidade prática, pode usá-la de outra maneira.E NUNCA vou acreditar no que um político diz, a não ser que tenha provas e dados concretos! Questão de sobrevivência. Bom viver nessa homérica mentira que é a imaginação.Algumas pessoas nasceram mesmo para o engano...