quinta-feira, 9 de maio de 2013

Eu, os russos e Tchekhov


Outro dia estava lendo um conto de Tchekhov e fiquei pensando sobre isso.Atualmente leio poucos romances, ando metido mais em leituras de ensaios e poesia.E jogo minha vida fora em desenhos e pinturas, na maior parte do tempo.Mas esse autor russo me chama a atenção por ser um tipo de russo-anti-russo, ao mesmo tempo.Isso porque estamos acostumados - pelo menos eu estou - com aqueles espaços de dramaticidade autêntica, muitas vezes tendendo ao melodramático ,da cultura russa, com o desenvolvimento sempre de uma dinâmica de ação dramática.Dostoievski é o maior exemplo, levando isso ao paroxismo do delírio de ordem psicológico, ele, autor universal que nos abriu os porões e recessos inconscientes de nossas paixões por meio de seus personagens, frequentemente alucinados.Como a vodka, Dostoievski nos enlouquece.
     Não sou grande conhecedor da literatura russa, exceto da leitura de seus clássicos mais conhecidos.Adoro a música erudita criada por esses eslavos, não só a do final do século XIX, como também a do século XX.O grupo dos cinco, as canções folclóricas russas(tinha um amigo, russo nativo morando por aqui, que me forneceu vasto material que ouvi), Tchaikovski, Mussorgski,Scriabin, Prokofiev, Shostakovich, Stravinski(o mais ocidentalizado, uma genialidade- certamente o maior gênio musical russo! - mais comedida, exceto nos primeiros balés, mas sempre um russo exótico no temperamento profundo), todos esses autores sempre ouvidos, fruídos até as entranhas de minha alma, durante décadas já. Frequentemente mergulhados em concepções estéticas de cunho romântico ou simbolista - com soluções formais atendendo a essas concepções -, onde o emocional nunca se deixa domar pelos princípios formais mais rígidos.Lembro-me de meu entusiasmo por Maiakovski durante meu entusiasmo juvenil pelo comunismo.Pobre Vladimir, alma delicada demais para aqueles tempos de terra "ainda não grávida para a liberdade"! Em síntese: fala-se em arte russa e logo pensamos em emoções intensas, tudo virando de cabeça para baixo de uma hora para outra.Não é à toa que houve revolução por lá, revolução que virou um socialismo que se desmoronou tão rápido como um castelo de cartas.Tudo muito radical(coisa não muito típica em nosso morno temperamento latino-tropical), imprevisível como as emoções dos personagens dostoievskianos, extremado, passional, mesmo quando elaborado filosoficamente.Penso nos futuristas russos, em Kandinski na pintura.Ou na teosofia que foi tão forte por lá, até o advento da revolução de 17.Misticismo e religiosidade até a boca; até o comunismo por aquelas bandas assumiu aspectos místicos, com Lênin virando o primeiro santo do socialismo.A Rússia é o que sobrou da antiga civilização bizantina, como bem afirmava Toynbee, ainda viva em muitos aspectos em seu vasto território.A arte russa teve influência marcante e decisiva na cultura ocidental, sendo, posteriormente, esmagada em seu alvoroço vanguardista pelo stalinismo e sua hedionda doutrina do realismo socialista.Mas o que se criou ficou.Aí pensamos em Tchekhov.Pouco a ver com materialismo comunista advindo depois de sua morte, mas pouco a ver também com o misticismo simbolista russo tradicional, religioso.
      Os contos assim como o teatro de Tchekhov não são construídos a partir de um esqueleto dramático de ação.Tudo se desenvolve a partir de um todo envolto em "atmosferas".Um personagem de Dostoievski acaba por nos demonstrar o que pensa através da ação, do impulso, de falas longas e exasperadas, irresistíveis; coisas mais ou menos como " se Deus não existe, então tudo é permitido " ou "se a Rússia não se salvar o mundo estará perdido!".Dá para imaginar a gente falando isso do Brasil?Bem, nós já estamos perdidos mesmo...Quem sabe o mundo já tenha se perdido de si próprio.Em todo caso, no desenrolar da narrativa de Tchekhov ,as falas são desenvolvidas num plano temporal mais estático, reflexivo, frequentemente melancólico, às vezes cínico.O tempo parece parar, daí que ele é ótimo para transposições imaginárias atemporais.Não há catarse, seja através da fala ou da ação, induzida ou não dentro de nosso imaginário subconsciente.Nada vai jorrar, nada vai explodir, se a tragédia vier, virá mansamente, como uma morte estranha e silenciosa que desce mansamente de um céu cinzento e nos envolve.Uma atmosfera feita de ações e palavras e gestos sutis, pequenos detalhes despidos de qualquer grandiloquência, um concerto de câmara em acordes de baixo sem dissonâncias aparentes.Estas estão nos interstícios da ação, como estão nos interstícios entre nossa alma e nossas atitudes cotidianas.Música de câmara, não sinfônica.Mais um Stravinski neo-clássico que um  Tchaikovski melodramáico, umTolstoi das grandes narrativas - por sinal,  autor que li em minha juventude, meses lendo Guerra e Paz, tantos personagens, eu sem maturidade alguma para ler aquilo tudo - ou de Anna Karenina.
     Aos dezenove anos vi uma encenação de A Gaivota de Tchekhov.Passei uma noite em claro pensando: quero ser artista.Mas não sentia talento algum em mim, salvo um impulso irrefreável para colocar emoção em movimento por meio da forma.Acabei me restringindo às formas matemáticas e fiquei na engenharia até jogar tudo pela janela depois de ouvir uma sinfonia de Mahler. Ah, o velho romantismo histérico e juvenil, citado, meio de passagem, de maneira um tanto melancólica pelo autor russo, tanto nos contos que li quanto em seu teatro!
     Há algo de cético e amargo em sua obra.Há muito de cético e amargo na vida.Mas a ânsia de poesia e beleza a enche de significado , mesmo assim.O tempo devora a ilusão, o relógio da existência parece sincronizado com o nada, enquanto as pessoas seguem a vida em meio a futilidades, vaidades e egoísmos sem fim ou siginificado.Sempre senti essas coisas nos contos que li de Tchekhov.Seu teatro também deve estar cheio dessa concepção filosófico-existencial.
     Acho até que o nosso Machado é mais amargo, mais pessimista.Qual o problema?Na ação política  ou prática, pessimismo, tanto quanto otimismo, os dois podem ser muito perigosos.Na arte não, porque a arte é ilusão, as coisas se resolvem dentro das possibilidades dos planos imaginários que nos roubam da realidade da vida por ser ela, vida, insuficiente para todas as coisas presas em angústia, desalento ou esperança nas atmosferas do existir.Como nos contos que li.Na vida, como nos contos de Tchekhov, uma certa ausência de enredo.Enredo?Quem escreveu as linhas e enredos que assumimos e falamos?Fala, Dostoievski! Estaremos perdidos?Perdeu-se a Rússia? Pior de tudo: não aprendi a ler russo do original.Que lástima!

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