quarta-feira, 29 de maio de 2013

Impressões sobre a Sagração

A Sagração da Primavera faz cem anos de sua primeira apresentação, em Paris.Foi um marco na história da música e do balé.Música de Stravinsky, coreografia de Nijinsky, cenários e trajes de Nicolas Roerich.Este último foi quem recolheu o material visual e sonoro(ícones, pinturas, trajes camponeses, canções folclóricas russas) para que os dois primeiros construíssem o balé.
     Já faz décadas que ouço a Sagração, morrerei ouvindo.A primeira vez que vi uma encenação sua foi no exterior, numa coreografia de Béjart.A de Nijinsky só vi em filmes. Achos as duas maravilhosas, distintas;
 a primeira mais estática, cheia de movimentos angulosos, paradas, a segunda mais dinâmica e gestual; parecem se complementar na expressão da música selvagem e rítmica de Stravinsky, um contraponto entre o apolíneo e o dionisíaco através do universo coreográfico.
      Imagino o escândalo que a música de Stravinsky com  a coreografia de Nijinsky devem ter causado na platéia,  o público acostumado aos maneirismos dos rituais clássicos do balé da época.Ainda hoje são coisas modernas, atuais, causam estranhamento.A sensação de beleza, a estesis dos gregos, apenas aumenta com sucessivas audições da obra.Um universo musical e plástico inconfundível na sua estrutura geral.
     Como dizia o filósofo alemão Adorno, o público rejeitava o moderno , suas dissonâncias, por não aceitar as próprias dissonâncias criadas nas pessoas pela  modernidade.
     Quando da apresentação da Sagração, havia muito interesse sobre o primitivismo de culturas ancestrais,pelo folclore de países de outros continentes, pelo exótico de outras culturas que não a tradicional européia; daí que o material folclórico russo era tão apreciado, seus exotismos tão degustados, daí o sucesso de balés como o Pássaro de Fogo e Petrusca.Mas poucos esperavam algo tão radical como a Sagração.Golpe de gênio de um compositor jovem.Música genial, coreografia, idem.Cenários e trajes fora dos padrões da época, nada parecido com o balé da época.Um tema: um ritual de morte, evocando as forças primitivas da natureza em danças ritualísticas, uma tragédia sombria anunciada desde o início.Nada romântico, nada adocicado.
    Pode hoje não causar escândalo, já que estamos familiarizados com toda essa maravilhosa história do balé moderno, de Béjart a Pina , mas tudo começou ali.Qualquer pessoa, amante ou não de balé e de música de concerto, não deixa de ter uma reação de estranhamento ao ver uma encenação da Sagração.
    Eu me lembro claramente da primeira vez que ouvi o balé integral, ainda lá pelos meus vinte e poucos anos de idade. Conhecia trechos dele, já que sonoplastas frequentemente os usavam  na tv ou no cinema.O impacto foi monstruoso, das maiores e mais estranhas emoções estéticas que experimentei até hoje.Aquela música furiosamente estranha, planos e quadros rítmicos se sucedendo numa atmosfera de ritual(na verdade, um ritual de morte!), mexendo com o interior das estranhas, uma música que irresistivelmente me concitava ao movimento, uma vontade maluca de voar dançando no espaço com as cordas estridentes, os sincopados ritmos dos metais, as percussões mexendo com a epiderme dos nervos, uma vontade de renascimento como o próprio ritual do roteiro do balé  apresentado. O que é, afinal, um grande impacto estético senão um renascimento?
     Vida e morte, assim é a Sagração.Vivemos e morremos, pelos sentidos, durante sua audição.Mesmo levando em conta que a genialidade construtiva de Stravinsky dispôs, com engenho e habilidade, uma série de materiais e canções folclóricas russas de acordo com uma estrutura musical que se pautava pelo ritmo( por sinal,a única coisa natural  em qualquer música, de qualquer gênero), não podemos deixar de sentir o crescimento de algo violento dentro de nós, a libertação de um bárbaro escondido sob a capa civilizada dos bons modos e costumes que nos permitem viver em sociedade mas, ao mesmo tempo, nos privam de algumas felicidades instintivas naturais.Isso tudo sublimado pelo poder da música, da instrumentação, uma complexidade racionalizada expressando a irracionalidade, um milagre da inteligência  e da sensibilidade. Eros e Tanatos harmonizados pela imaginação humana e sua apreciação. Expressão do mundo moderno pela música: assim é a Sagração.Polirritmia, aspereza, politonalismo, uma solução intelectual servindo-se do barbarismo.Hoje, torna-se um tanto difícil enxergarmos a Rússia primitiva que está por trás desse denso tecido musical, mas está lá; a Rússia pré-cristã, pré-eslava, a antiga Rússia dos povos citas.
    Identificamos essa música com toda maquinaria ensandecida dos tempos modernos, essa maquinaria e tecnologia que serviria tão bem as forças da destrutividade humana na primeira guerra mundial.A Sagração da Primavera foi o prelúdio de um grande inverno de morte e destruição que começaria um ano depois das ensurdecedoras  vaias que tentaram interromper sua apresentação. O sacrifício final da dançarina seria, no futuro, o sacrifício do soldado desconhecido nas trincheiras  imundas da guerra.E, claro, tudo isso perfeitamente entrosado com a angulosidade dos movimentos da coerografia nijinskiana, grupos de bailarinos movimentando-se em eurritmias meio mecânicas,  efetuando desenhos no palco,  organizações de movimento meio bárbaras, movimentos estranhos e sincopados dos bailarinos, como se estivessem sendo arrastados para a gravidade natural dos corpos em direção à terra para, no fim, tudo isso culminar na dança final sacrificial da bailarina, resistindo morrer mas, enfim, sucumbindo às forças naturais de extinção da existência, dançando até a própria morte.Simplesmente divino, como devia ser divino ver Nijinsky dançar(ele não dançou na Sagração, restringindo-se apenas a feitura da coerografia).

    Só vendo, só ouvindo.Quem viu sabe do que falo.Quem ama balé não escapa da paixão pela Sagração.Como dizia o esteta Herbert Read, “se o século vinte tivesse que ser lembrado, no futuro, por uma única obra de arte, esta seria a Sagração da Primavera”.

terça-feira, 28 de maio de 2013

pequena reflexão 29 de maio


   Em termos de relação humana, prefiro até uma pessoa que acredita em deus – descontados, obviamente, os fanatismos -do que uma que finge não acreditar mas se comporta como quem acredita. Aí é dose! Esse tipo de gente nos confunde, não sabemos como agir, como falar sem que sejam maculadas suas convicções. Certas formas de farsa me irritam. Ou se acredita ou não, ou se tem fé ou não; pior é justificar fé por meio racional.Depois agir irracionalmente. Então que fique só mesmo no discurso de pensamento.Pascal tentou isso com brilho e não conseguiu, a meu ver; produziu, com isso, bela literatura filosófica.Mas, afinal, era Pascal, um pensador genial que, mesmo sendo seus Pensamentos livro meu de cabeceira por um tempo, não conseguiu me convencer da existência de deus.Mas foi coerente com o que disse ou fez em sua vida. E certa coerência é sempre admirável; não gosto dos que ficam pela metade, não chegam até o fim, ficam sempre no estágio morno, inclusive nas posições filosóficas ou éticas.

      Quem já matou deus dentro de si, pode se resignar, não adianta, nunca mais terá paz consoladora, viverá sempre entre o absurdo e o nada, será sempre um trágico; não mais fará  as pazes com a projeção de si dentro da imagem de um deus que forjaram para sua consciência.Terá só a si próprio e as encruzilhadas em que se criou.De "espaços infinitos e silêncios eternos" nas belas palavras de Pascal.
 útero(tinta)


 sereia
Lúcia no atelier de Jorge

Três variações de retrato(desenho)




segunda-feira, 27 de maio de 2013

Relendo o Morro dos Ventos Uivantes(impressão)

"O teu sangue-frio não consegue ficar febril; corrre-te nas veias água gelada,mas nas minhas está o sangue a ferver, e ver tanta frieza à minha frente deixa-me desvairada".
Esta é uma fala da personagem Cathy, heroína(se é que se pode chamar assim) juntamente com seu par, Heathcliff, um homem apaixonadamente doente por ela e que, por ver a frustração desse amor,  a morte de sua amada,resolve dar vazão ao que de mais intenso e demoníaco pode haver num ser humano."Assombra-me Cathy, além dos umbrais do silêncio da morte, pode me roubar a paz do sono com teu espectro de alma que vaga, mas não me deixe só!".Quer jura maior de amor do que isso?
  Esse clima passional e sombrio  do livro O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Bronte sempre me fascinou.Sua leitura,demorada e atenta aos diálogos, instilou-me - ou, pelo menos, juntamente com outras obras e situações de vida, ajudou a instilar - uma visão meio fatalista do amor, uma concepção de romantismo ligada ao pathos, ao descontrole, ao voto pela eternidade.O amor impossível, os amantes que, mesmo após a morte, têm seus espíritos vagando juntos pelas charnecas cinzentas, o vento eterno batendo, o vento real, o vento do tempo, o vento que nunca traz a resposta, apenas a insinua.
     Nada a ver com os tempos de hoje.Não vejo a possibilidade de moças contemporâneas espelharem-se no limiar de loucura e sanidade que permeia as ações da personagem Cathy.Cathy não precisava de "incrementos" químicos ou artificiais para passar de um estado para outro.Hoje em dia, seria devidamente medicalizada, enquanto Heathcliff seria demovido de sua obsessão pela mocinha por meio de alguma terapia.Como pensar em amor eterno, além da vida, nos tempos de hoje?Já se tornou difícil até o temporário...
    Claro, há muita declaração de pseudo-romantismo no dia a dia, quando, na verdade, não passa de sentimentalismo disfarçando certo encantamento erótico; o qual, diga-se de passagem, sempre tem os dias contados.Existe uma grande diferença entre o dramático e o melodramático, entre o trágico e o sentimental.
    Andei relendo algumas páginas do livro e mergulhei, além do meu tempo, naquele tempo e numa dimensão de minha memória que comungava dessas expectativas e atmosferas de descontrole emocional e amoroso, a furiosa turbulência que mistura idealismo e erotismo amoroso.
Querer amar é sempre querer privar um pouco do sabor da morte, antes de nos refestelarmos com seu silêncio, às custas do corpo que tudo nos conduz e a tudo nos ilude por meio dos sentidos.
Irresistível!Estou mais velho, mas uma parte minha que se criou ali, que vivenciou as páginas do livro ou as passagens de cenas das adaptações cinematográficas que vi, isso tudo continua encapsulado vivo numa dimensão da memória que não consigo definir.Ou seja : a morte dos amantes não mata o amor.Este é eterno mas não pode ser vivenciado pelos amantes pelo resto da vida, simplesmente porque sua eternidade está no momento.Um minuto, uma hora, um beijo até, tudo isso pode valer mais que uma vida? Abstratamente, o amor pode perdurar.Concretamente, os próprios amantes encarregam-se de destruí-lo.
     Céus, eu, tão cético por sistemática de pensamento, tão idealista e perdido por falta de sistema do sentimento.Que fazer: cada um age de acordo com suas contradições.
Aí leio outra passagem, onde Cathy diz que há amores que são como folhas  na vegetação, movendo-se, adaptando-se de acordo com o vento, de acordo com o tempo; mas há os que são como rochas, inamovíveis, ficando ali o tempo inteiro.Podemos pisar as rochas, fazer de conta que não as vemos, mas elas estão ali, fixas na paisagem da existência, resistindo ao açoite do vento e do tempo.
 Ah, essa Emily Bronte escreveu um só romance em sua curta vida!Nem precisava mesmo viver mais depois de fazer algo como isso.

domingo, 26 de maio de 2013

Homem bonzinho é chato?

É , parece que homem bonzinho é chato mesmo.Seria uma inadequação da espécie humana à situação de bondade? Velha questão dostoievskiana de personagem real, além da literatura, no mundo de crime e castigo em que nos espelhamos.Sentimos com facilidade a maldade que podemos exercer, mais facilmente do que o amor que podemos criar.Anabolismo e catabolismo, assim é a vida.
     Já faz tempo que acredito que, inspirado pelo amor e norteado pelo  conhecimento, torna-se possível a qualquer cristão ou pagão combater as forças de anarquia e ódio que existem dentro de nós.Isso porque não faço parte dos otimistas que consideram o homem naturalmente bom, cabendo à sociedade  culpa por sua deformação.Muito menos daria crédito à concepção do pecado original; estou fora dos raciocínios mecanicistas que situam tudo entre o bem e o mal.Acho que tudo se complementa, uma parte  interpenetra a outra, assim como vida e morte fazem parte da mesma moeda da existência.Um ser humano, naturalmente, tem coisas boas e más.Evidente que há uma minoria(fato comprovado estatisticamente) onde o descontrole da agressividade produz iminente perigo constante.Situação de guerra ou cobiça libera os demônios que jazem silenciosos dentro de nós.E todo mundo sempre está um pouco em guerra com a civilização, da qual todo mundo depende para a sobrevivência no planeta.Viver é sempre um dilema, individual ou coletivamente.Idealismos só funcionam em modelos abstratos.Daí que o bonzinho seja uma abstração forçada?
     Nosso mundo nos coordena por meio da culpa, tenhamos feito a contravenção ou simplesmente a imaginemos sendo feita . O estado se incumbe de efetivá-la em medidas punitivas, além dos limites de nossa consciência, quando a nossa inconsciência nos faz pisar na bola ao pisarmos os pés de outros.Embora haja pessoas que pisam os pés de outras sem querer, contudo, machucá-los.
     A bondade seria uma afirmação das forças do amor.Por outro lado, confesso, não consigo ver qualquer gesto afetivo sem alguma forma de agressividade dentro, em qualquer área da vida.Claro que há as dosagens, de acordo com a situação envolvida.Há também a situação mãe- filho, mas aí o enfoque é outro,a realidade é outra; talvez mais apreciável pela psicanálise..No dia a dia, na interação social as coisas são outras.
     O bonzinho parece ser uma projeção onírica do que gostaríamos de ser e não podemos ser.Evitar de se fazer o mal, por incrível que possa parecer, isso  já considero uma atitude virtuosa.Somos naturalmente egoístas por nossa natureza e, para se viver em grupo ou dupla, tem que se abrir mão da tendência de se olhar apenas o próprio umbigo.
     Com dois ou mais remadores, o barco só navega com ação em conjunto, senão temos que jogar um ou outro na água. Eis um problema para o futuro da humanidade.Por outro lado, egoisticamente, poderiam me perguntar: mas que diabos tenho a ver com a humanidade? Diria: tudo e nada, ao mesmo tempo.


     O problema é que, tomando meu caso como exemplo, certa intoxicação cristã pode criar pontos positivos e negativos, socialmente falando.As pessoas adoram falar dos idealistas e puros, de sua bondade e determinação,  da abdicação das coisas mesquinhas ou reles, de como seria bom que todo  mundo se comportasse dessa maneira e outras coisas mais; contudo, na primeira oportunidade não hesitariam  todos em jogá-los, esses  pobres idealistas e puros, aos tubarões ou à primeira fogueira de plantão.Triste verdade que me assombrará até o fim de meus dias, uma das grandes frustrações "idealizadas" que forjei para mim mesmo. Isso porque toda pureza encerra o germe da corrupção, assim como todo amor pode represar, dentro de si, muito ódio escondido.Daí a importância de nossa razão para mediar as coisas.Senão sairíamos por aí matando todo mundo por qualquer bobagem, atropelaríamos qualquer pedestre que nos atrapalhasse, estupraríamos a primeira mulher que nos incitasse algo de desejo sexual.  Sempre estamos andando na  beira do abismo e fazemos de conta que não; andar no fio da navalha sempre é difícil, assim como "a vida e seu duro ofício", nas palavras de um poeta.O primeiro pecado original foi a descoberta da razão, não do sexo; esse já existia antes e, como outros instintos básicos, pode descambar para violência ou morte, sem pestanejar.A razão põe um pouco de ordem nessa briga entre amor e ódio dentro do coração humano.O judaísmo e, posteriomente, o cristianismo vieram contando outras histórias para justificar a existência do olho que tudo vê.
     Sempre imaginei que poderia prender as mulheres pela bondade e sempre me ferrei. Esqueci do conceito confuso, dúbio e impreciso de segurança ou do natural egoísmo, essa condição humana sem prerrogativa de gênero.Mas, hoje em dia, ninguém está mais seguro de nada.Também se ferra quem imagina que pode prendê-las, por muito tempo, com sexo. Bobagem!Talvez seja melhor o termo segurar durante um tempo, o tempo que elas quiserem.No fundo, ninguém tem a fórmula de como prender uma mulher. Salvo o caso do tarado que aprisionou ,nos porões de sua casa, três mulheres, incomunicáveis do mundo, servindo-se delas como escravas sexuais.Mas eu diria que, nesse caso, a situação é um pouco forçada demais...
     Pelo menos,  essa questão prisional saiu fora do calabouço de meus problemas; certamente, não vejo mais como alguma mulher me prender de forma convencional, a não ser por astúcia jurídico-procriativa.  Cada um tem que aprender a cultivar um jardim para si, como dizia Voltaire. Sem contar que o tempo ficou mais curto, muita coisa na minha cabeça, muita ilusão gorou por "decurso de prazo".Posso até ficar prisioneiro de abstrações criadas em torno de coisas ligadas ao feminino, mas nada que justifique um tributo ao tédio para ter essas coisas. A carne engana  a alma  somente enquanto a mãe natureza quiser dispor de nossa vida para seus desígnios e interesses, dela natureza.Agora entendo o significado do "legado de nossa miséria" ao semelhante, nas palavras do personagem machadiano. Já sabia, mas fingia não saber.
     Nossa aparente bondade pode ser uma falácia, uma fraude.As intenções verdadeiras podem ser outras, como as que subjazem no aparente desinteresse da corte amorosa. Ou, simplesmente, a vaidade de querer aparentar superioridade moral e espiritual.Hum!
    Nenhum problema: sonhos, abstrações, simbolismos e forma  fazem parte de nossa vida, seja no trabalho, no amor, na arte, enfim, nas coisas da vida em geral.
Onde realmente posso ser bom,  onde a bondade pode ser algo além de um simples dom, um instrumento de nossa vontade?
      Não sei.Apenas vou tentar ser menos chato(menos bom ou bonzinho?) ou insuficientemente mal.Para o bem de meu semelhante ou da paciência de outras.Sem saber o porquê, ainda acho viável a humanidade. Seria isso uma bondade ou um egoísmo?

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Cinco silogismos básicos sobre o amor

Cinco silogismos sobre o amor:






Silogismo idealista:
Eu a amo, você me ama; logo, nos amamos

Silogismo masoquista:

Eu a amo, você não me ama; ainda assim eu a amo.

Silogismo realista:
Eu a amo, você não me ama; logo, eu a odeio.

Silogismo ceticista:
Eu a amo, você me ama; logo, podemos nos odiar.

Silogismo alternativo:
Eu a odeio, você me odeia; logo, nos amamos.

Dicas básicas para roteiros de filmes básicos.Pouco lógicos: não sujeitos a silogismos. Aliás, funcionasse por silogismo, o amor não seria o que é e, isto sim,  seria uma equação com solução através de números imaginários. Afinal, constitui-se de números irracionais.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Homem não chora?

Homem não chora.Desde pequeno ouço isto, criança chorona que era.Com o tempo as lágrimas foram secando.Uma forma mais marcial, se podemos chamar assim, de levar as coisas. Tempo que endurece a pele e o coração?Mais velho , além da infância encastelada, desatei a chorar por coisas que me tocavam a alma, coisas inesperadas, no silêncio da contemplação que a beleza permite.Ficava surpreso ao ver como, por exemplo, música ou poesia me faziam chorar. Ou uma frustração amorosa.
     Acho que sou um chorão.Mas nada me fez derramar mais lágrimas em abundância do que as mulheres.Bem, se a maioria das lágrimas foi em vão, pelo menos serviu para aliviar.Chorei muito com filmecos sentimentais, principalmente com histórias de amor que não davam certo.  Dizem que o mesmo ocorria com Henry Miller, quem diria!Coisa de mulher?!Puxa vida, é bom que a maioria dos homens que conheço não saibam disso, ah,ah!Presumo.Mas assumo que sou chorão.Mas, quem diria, não chorei no enterro de meu pai, arrasado por dentro ao ver o choro das mulheres sobre o esquife.Choro de mulher me silencia, tapa meus canais lacrimais e faz o coração se apertar como numa camisa de força.Criança, então, nem pensar: é como um fio de aço cortando a alma, nada pior que um choro de criança.
     Diz-se que os gregos choravam muito.Pelo menos no período arcaico, pré-socrático.Choravam por tudo, mas principalmente ao ver o companheiro morto em combate; choravam até sobre o corpo do inimigo que, valoroso, havia morrido em combate.Elegante,não? Mas, homem não chora, não é mesmo?Joguete dos deuses, eles tinham mais é que chorar.
    Em todo caso sou chorão.Quando choro para "dentro" é pior.São lágrimas que, vertidas para o fundo de uma laringe inexistente e inapreensível, parecem empedrar a alma.Lágrimas que vão para dentro são como a morte: inexplicáveis.
   Claro que há o choro por raiva, este mais difícil de explicar.Mas explicar lágrimas? Lágrima não sw explica, apenas se verte, fluido estranho, matéria líquida que condensa um pouco de nossa alma.Há lágrimas que poderiam derreter aço, fender uma rocha, matar um homem se pingadas em seu ouvido(seria o veneno de Lady Macbeth feito de suas próprias lágrimas feitas de mal?), mudar a matéria alquimicamente, pedra em ouro pelo poder lacrimal, vai lá saber...
    Chorar na frente de uma mulher sempre me fez sentir o ser mais fragilizado ser do mundo. Freud explica?Já o fiz, muitas não mereciam me ver tão prostrado assim.Mas, que fazer: não há justiça metafísica nesse mundo, ainda mais para os chorões como eu.Óbvio que muito homem e mulher deve ter me achado o "bundão" em situação assim.Tem amigo meu que nunca vi chorar, mas já vi homem chorando como criancinha até por motivo fútil.Há mais chorão entre o céu e a terra do que sonha o nosso vão senso comum.
     Já chorei, além da música, ao ver quadro, poema, paisagem, até mesmo ao ver a beleza de uma moça jovem dançando.Coisa de quem envelhece e ainda tem um saco de lágrimas para gastar.Talvez eu chore muito porque tenha muito ódio guardado dentro de mim.Uma coisa compensa a outra.A maior parte das lágrimas encerou o  chão de meu quarto, sou quase que acionista de fábrica de lenço de papel.Não vou botar a culpa na rinite alérgica.Mas não vejo a ausência de lágrimas como prova de insensibilidade.As rochas não choram mas sentem a dureza do vento e da chuva; se chorassem não seriam rochas, mas algo que se assemelha às rochas sem o ser.Há os humanos que são rochas, alguns como pedra sabão.
     Mas vou aprender a chorar menos.O tempo se encurta, poderia me antecipar chorando a minha própria futura morte, como choro, silenciosamente os que se foram , até mesmo os que morreram e não conheci - ah, maldade da ausência de eternidade! -, chorar pelo sofrimento de antes e de sempre da humanidade, tão sofredora e chorosa que é.Para onde vai o pranto pela humanidade?Lágrimas de sal que encheriam os oceanos de mais sal, o sal que salgou o mar de Pessoa pelo pranto das que viram seus entes queridos partindo para nunca mais além do grande mar oceano.Viver, sofrer, amar, pensar e chorar.Assim é nossa vida, assim gira  o mundo, as máquinas da civilização assim se movimentam.
   Ainda bem que as mulheres continuam chorando.Eu também já negligenciei o choro alheio, mácula assumida na minha conduta.Forma de ser duro.Afinal, homem não chora.Não?

terça-feira, 21 de maio de 2013

Hoje é dia de nascimento de Henri Rousseau, pintor francês nascido no século XIX e morto no início do XX, considerado o mais famoso pintor naif de todos os tempos.O termo naif, primitivo ou ingênuo, significa que o artista não teve aprendizado formal de arte, sendo auto-didata em pintura.Hoje a crítica histórica de arte releva esse tipo de artista.Na época dele era menos comum.Quanto frescor, quanta liberdade de cor e imaginação, que detalhismo que não tolhe o equilíbrio ou a harmonia geral da composição, tudo tão pouco cerebral!Ainda bem que começou tarde a pintar(depois dos 40), para o bem da arte, para o bem de nossos olhos.
     Picasso o adorava, tinha um grande quadro  dele pendurado em seu atelier.Tarsila conta que, quando de uma visita ao atelier do gênio cubista, o espanhol lhe indicava o quadro dizendo:" isso me comove: tanto esforço detalhista para passar uma impressão, pura e quase infantil, do que se sente, sob um olhar de adulto; tudo o que é feito com tanto amor e dedicação, como este quadro, merece o nosso respeito.Por isso gosto de vê-lo pendurado assim."
     Foi realizado , de certa feita, um famoso jantar, promovido por Picasso e com a presença da nata das vanguardas da época, em homenagem ao "douanier"(alfandegário), como Rousseau era chamado.
    Existe um encantamento particular nos quadros de Rousseau, todos eles, em sua maioria, de grandes formatos.Os tons esverdeados são predominantes, marcados por vegetações estranhas, retiradas da imaginação do artista - o qual contava histórias fantasiosas sobre viagens a lugares exóticos que ele nunca tinha conhecido -, trabalhadas sempre em contrastes não violentos mas sempre expressivos.Tudo se harmoniza numa unidade cromática e poética.Mesmo sem saber ou ter aprendido, Rousseau era um mestre.Homem simples e de mente simples, mas de profunda imaginação e sensibilidade com a cor. Acho que Marx Ernst, o grande surrealista, foi muito influenciado pela pintura do douanier.
      Alguém ousaria chamar essa pintura de ingênua?

segunda-feira, 20 de maio de 2013

nada nos basta(nota)

Todo sentimento particular encerra algo de universal.A dor individual sempre é uma tradução, confusa e enigmática, de uma dor maior trazida de um universo maior.As vivências particulares são transposições das vivências coletivas.Apenas nos perdemos em nossas mesquinharias cotidianas, as quais nos são impostas por valores, sejam eles ideológicos ou psicológicos, com isso nos alienando daquilo que liga nossa particularidade com a universalidade.Somos a humanidade, a humanidade somos nós.Mesmo que saibamos das limitações humanas, do quanto de ódio e amor escondido dentro das pessoas, não temos como fugir da barca em que navegamos, meio à deriva, nesse oceano endoidecido do cosmo.
     Pode ser que no sono entremos em contato com esse veio de singularidade de nossa mente, o qual encerra, seja-se adepto de idéias transcendentais ou não, um mistério que vai além da amplitude limitada de nosso cotidiano.O desespero de Hamlet nos assoma todo dia, apenas não ouvimos seus resmungos sombrios.O "ai de mim!", tão presente na tragédia grega, é nossa primeira interjeição ao raiar do dia, poderíamos mesmo entoá-lo ao escovar os dentes. Nossa dimensão é a finitude de nossas ações, nossos caminhos  sempre construídos por encruzilhadas ; estas não se adaptam a algum "gps" seguro, não faz parte do roteiro da vida a segurança absoluta.Daí vivermos como semi-deuses e nem percebemos, os deuses nos alienando das coisas pela artimanha de seus ciúmes, em nosso tempo, em nosso espaço.Hoje temos consumo e diversão, amanhã teremos morte.O embrião disso aqui tudo é um sopro de eternidade e, de passo em passo, da construção e da destruição, fazemos a carne diária de nossa insolvência enquanto nuvens sombrias apenas se esforçam, tolas vaporosidades do acaso, em ocultar um sol que foi construído por nossa vontade.
    Muito além  deve haver um além que nos conduz.Isto está dentro de nós, apenas o ocultamos pela servidão ao medo, à inconsolável covardia que nos rouba de ser algo muito além do que somos.Medíocres ou não, mesmo que não percebamos, somos pequenos heróis para nós mesmos.
    Nunca é uma questão de confissão, talvez mesmo seja ilusão.Queremos dizer e as palavras não nos bastam, o reconhecimentos dos instintos asfixiados não nos basta, nem toda turbulência da alma ou da carne não nos basta.Nada nos basta, por isso somos humanos.

domingo, 19 de maio de 2013

nota: solidão na cidade

Ando meio solitário ultimamente, ainda que leve uma vida social não de toda misantrópica.Já fui mais solitário em outros momentos, até mesmo quando vivia um tipo de solidão compartilhada nessa coisa que se chama de casamento. Temos que aprender a viver com a solidão.Mas, em nosso tempo, isso é quase como que um sintoma de peste.Sim, isso é típico do mundo moderno.Ou seria extensivo a todas as épocas? Solidão, condição inelutável do homem.Nasce-se só, morre-se só, ou mal acompanhado pelos operários da natureza que são os vermes e bactérias, ou por uma companhia forçada pela presença da conveniência. Em todo caso, um tom confessional só teria sentido na medida em que traduzisse algo de universal desse sentimento solitário.Exigiria-se para tal um tratado longo, algo sem sentido a meu ver. Já se escreveu muito mais e melhor do que eu poderia fazer sobre isso.
     Sentido, bem, isso minha vida, assim como a de todas as outras pessoas, não tem.O sentido é sempre o senso do presente. A vida se vive, por sensações, passadas ou presentes, imediatas ou retardadas.Às vezes essas sensações se transformam em abstrações, pensamentos.Uma forma alternativa de encarar o monstrengo da vida real. Enquanto um troço qualquer não me dá  nem me mata.
    Não vou tentar desentortar o tronco em que me firmei no solo da realidade.Isso seria surreal, no caso.Não me considero arisco nesta cidade de gente arisca, onde ninguém confia em ninguém.Eu não confio, apenas desconfio; mas tenho lá minhas esperanças, temperamento anacronicamente romântico que sou, algo incompatível com minha idade.Que fazer! Pelo menos espero não levar um tiro à toa.
     Que fazer? Botar uma música na vitrola e esperar.Vitrola? Coisa do arco da velha, sem dúvida.
     Apenas sair pela multidão anônima da rua, captando uma conversa aqui ou ali, uma expressão de olhar perdida ou espantada, num espírito de flanneur tipicamente baudelairiano em que me condicionei ao viver em metrópole, bicho de cidade grande que sou. Claro, olhar bonitas mulheres e tipos exóticos, incluindo aí as feiuras particulares.Além dos descalabros naturais de mendigos, viciados, etc.
     A cidade se faz de cacos de asfalto, de cacos de gente.As pessoas são a cidade, o resto é formalidade de enquadramento e cenário.Agora, parece que até se tornou mais fácil se captar palavras, pensamentos, tudo meio quebrado, pelo falatório aflito nos celulares, pela angustiante perscrutação digital nos faces. Ah, as pessoas sempre aflitas, as mulheres sempre aflitas, até os cachorros sem dono aflitos ....E eu tentando bancar o zen nesse caos de carros e ônibus; vou acabar virando patê no asfalto, ainda mais se continuar teimando na bicicleta.
     Para onde vai essa fumaça de meu cachimbo que se perde em meio aos ares agitados das avenidas?Iria para junto das  nuvens? Dá para ir junto?
    A cidade, templo de solidão onde faço minha oração, presto as condolências constantes ao morto não esclarecido e fenecido pelo acaso que o circundou.
   De resto, toda a a fúria do ruído, do álcool, da música alta e ruidosa ou do sexo anódino, tudo isso apenas monta o esqueleto das coisas.O qual nos assombra durante o sono.Enfim, é a sobrevivência nisso aqui.Dá para levar se não se levar tudo a sério.Ainda que a vida seja um caso sério.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

desenhos postados em 17 de maio

O rosto indecifrável
ou a beleza indecifrável?
 A marionete
 rosto de moça(tranquila?)
 nu

 casal
reclinado(tinta sobre
papel)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

derradeiros pensamentos sobre um velório

Se as lágrimas sinceras e derramadas  por uma mulher, durante um velório, não conseguem ressuscitar um morto,  então deixo definitivamente de acreditar  em ressurreição.Em verdade, nunca acreditei nisso.Será?

     A moça chorava de forma tão compungente sobre o cadáver que - juro! - quase percebi o olho cerrado do morto piscando.Pensei: foi ilusão.Em seguida: assombração? Não: ainda não consigo aceitar bem a morte, seja a dos outros ou a minha.Claro , dos outros  cuja  a ausência desse mundo considero uma perda para nós.Ah, somos mesmo egoístas!Somos insensíveis à morte de tantos, tão poucos nos comovem. Eu mesmo já segurei alça de caixão de pessoa que não conhecia.Também dormi com pessoa que não conhecia, um tipo de variação fúnebre de caráter sexual.Mas um morto é sempre uma realidade estranha, irreal.Quanto mais o tempo passa, mais passo a pensar na morte; talvez porque a margem entre o eu estar agora aqui e o eu ser nada amanhã  seja mais estreita hoje do que há vinte ou trinta anos atrás.A morte não é mais uma abstração para mim, nada vejo de romantismo nisso. Não é abstração, é putrefação.O resto é silêncio.
     Quero viver, mas a vida soa com frequência como uma cacofonia insuportável.Há a beleza, os bons momentos, menos frequentes que o tom morno do dia a dia.Aí alguém morre e, pronto, baixa o medo do nada, do silêncio eterno que parece, solidariamente, nos irmanar ao silêncio maior do universo que nos envolve.É a hora que vejo como viver sem acreditar em deus ou coisa parecida é barra!


E penso: o que o morto pensava em seu último momento? Quase morri duas vezes e não me lembro dos pensamentos que passaram por minha cabeça naqueles instantes.


Havia uma moça que conheci na juventude.Era um doce de criatura, uma pessoa que eu julgava muito boa e com a qual me engracei em certo momento sem, contudo, que houvesse nada entre nós a não ser uma bela amizade.Fiquei uma época, alguns poucos anos, sem vê-la quando, numa ocasião nos cruzamos numa papelaria e eu, afoito com alguns problemas, fingi que não a tinha visto.Ela percebeu mas eu deixei estar.Alguns anos depois, perguntei a amigos comuns sobre ela e me disseram que havia morrido num acidente de carro. Ela era jovem, pouco mais de trinta quando de sua morte.
     Até hoje nunca esqueço, nunca esquecerei, a ausência de cumprimento naquela tarde da papelaria.O que se faz, o que não se faz, é o que se faz dessa vida.Tenho guardado um   poema de Drummond que ela copiou e me deu de presente, depois de umas flores a ela enviadas por mim.Falava o poema de um poeta que carrega a dor do mundo no coração. Copiado em letra bonitinha de moça, aquela caligrafia de escola, um pouco rígida, um pouco doce, assim como ela mesma o era.Enfim, se foi, já há algum tempo.Por fim, naquela tarde, ninguém me avisou que seria a última chance de a ter visto.
     Não sei se consigo guardar toda a dor do mundo em meu coração.Mas a vergonha de minha atitude, essa está impregnada nas paredes dele até o fim de meus dias. Nunca conseguirei consertar a descortesia.O que se faz, o que não se faz; assim se perde a vida. O que eu sentiria se, por acaso, tivesse ido ao velório dela ou visitasse seu túmulo? Confesso: isso me dá medo.


      E há os que vão a velório e se recusam ver o corpo do defunto.Tanto faz: o morto já não jaz ali, está transformado em memória...ou esquecimento.Nós somos  memória e esquecimento.


      Posso jurar que, depois de vê-las chorando sobre o morto, as lágrimas já secas, fora do recinto onde se velava o corpo, que aquelas mulheres pareciam luminosas...de pureza.Não consigo deixar de me espantar com mulheres até em velórios.Não consigo deixar de me espantar com esse espanto.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Tributo a um morto


Fui ontem a um velório.Todo o pranto do mundo parecendo derramar-se sobre o esquife do morto pelo pranto de mulheres.Imagino que essas lágrimas, recolhidas e pingadas em meu coração, poderiam dissolvê-lo, rachá-lo ao meio como uma rocha fendida por um ácido.Lágrimas de mulheres em velório cortam meu peito como um machado.
     E lá estava o morto, como todo morto, solene e engravatado; justo ele, morto, que em vida não era nem solene nem engravatado.O morto era artista e, diziam amigos íntimos , falava muito na morte ultimamente.Devia, é verdade, privar de certa intimidade com ela; todos nós andamos com a morte ao lado mas pouco dialogamos com ela, não aprendemos sua misteriosa fonética silenciosa, sua gramática que não nos ensinam nem na escola, nem em lugar algum.Nunca ouvimos seu sussurrar em nossos ouvidos, para que nos apressemos,  que há um encontro marcado. Sempre a imaginamos blefando, mas ela nunca blefa; como no filme, o cheque-mate chegará mais cedo ou mais tarde.
     E o morto estava lá.Não, minto: o que estava lá naquele caixão não era nada, assim como esse nada que virará pó misturado aos astros,  ao pó de outros mortos, tendo surgido em algum momento  de um outro nada.E entre esses dois nadas, aquilo que chamamos de vida, os "os rastros de Deus na lama" como dizia um artista genial, coisas que o morto deixou ,viveu ou deixou de viver.É o que fica.O morto não está morto, o morto somos nós, pois ele vive dentro de nós pelo que fez ou deixou de fazer.Afinal, somos todos os mortos do mundo.Entre esse nascer sem pedir e esse morrer sem querer - ainda que alguns exerçam uma forma original de livre arbítrio que acelera as coisas - o morto pede passagem, ganhou lá seu salvo conduto da prisão dessas bandas "d'aquém morte", quem sabe pelo seu trabalho de artista.
     Sinceramente, me sinto particularmente magoado quando artista morre, seja grande ou pequeno. Se a alma for grande, ele nunca será pequeno.Mas, claro, falo dos que põem a alma na jogada.Não é fácil levar essa vida e suas consequências fazendo  o que se quer, por necessidade interior.Não é a vida que cobra, mas sim a sua negação, civilizada, sociabilizada, bem comercializada, nesse mundo tão bem(?!) estruturado .E deixar coisas para os outros, sem saber no que vai dar, é coisa bem perigosa, arriscada, não faz parte da lógica da máquina do mundo.
     É isso aí: o morto está lá.O homem já não estava;todos os mortos, no fundo, têm a mesma cara, aquele resto de matéria não é mais ele.Ele é o que ele deixou.Por isso sua morte vive em vida dentro dos que sabem o que ele fez.Por isso sua morte inexiste na amplidão de todas as coisas que todos os mortos, fazendo coisas ou não, plasmam nesse fluxo doido , nesse caldo de matéria e sonho que vira o turbilhão que chamamos de humanidade.
    Ao morto, ao artista, a todos os mortos...Até logo.

                                             16 de maio de 2013

terça-feira, 14 de maio de 2013

Uma pequena reflexão sobre a agressividade


Que a agressividade masculina é mais evidente que a feminina, não resta dúvida.Ainda que não seja clara- tanto aos meus olhos quanto aos de outros pensadores ao longo da história -, a elucidação dos  mistérios da bissexualidade que reside no interior de todos não foi completamente elaborada; mas, sem ter muitas dúvidas, parece-me que a agressividade está ligada mais a componentes masculinos do que a femininos. A evidência está no histórico da  criminalidade. Não ponho a mão  no fogo por nenhum homem, eu incluso.
     Há homens mais agressivos, assim como homens menos agressivos(seriam mais femininos por isso?) no comportamento; assim como há mulheres agressivas com comportamentos agressivos, ou pouco agressivas no comportamento e nos modos mas agressivas em outras coisas, e assim por diante.Não há padrão certo, não há como ter padrão pelo fato da cultura estar ligada à base econômica material que a sustenta.E o mundo moderno tende, pela dinâmica dessa base e pelo andar da carruagem, a acabar com os papéis fixos de heterossexualidade.É o que me parece, não com certeza é claro.O futuro sempre é meio imperscrutável, sabe lá... Como teríamos que nos comportar em caso de catástrofe cósmica?
     Na Grécia antiga não haveria esse problema, a sexualidade por lá tratada de forma mais difusa, ainda que ao custo da mulher ser tratada de forma um pouco melhor do que um cachorro, fosse ele o de Ulisses ou não.Como vivemos sob a égide de valores morais derivados ainda do judaísmo e do cristianismo, ainda se insiste na tal normalidade do padrão heterossexual.Não me parece lógico.Lógico apenas que a biologia da espécie aja no sentido que a sexualidade existe, em sua base hormonal  e fisiológica, para a reprodução. Mas e se for criado um processo completo de reprodução artificial, sem necessidade de útero? Qual seria a função da heterossexualidade nisso aí? Dá um pouco de medo, mas não deixa de ser uma possibilidade.Pegue um cara de cem anos atrás e o coloque no mundo de hoje com um I-pad na mão,  e ele vai jurar que foi transposto para um mundo de bruxos.
     Nossa vida social, concordo, é vivenciada a partir da ponta do iceberg de nossa sociabilidade, por baixo da linha d'água um feixe de instintos que mal entendemos.Mas o ser humano é diferente e consegue transformar, condensar, desviar  para outros caminhos seus instintos, contando com isso com o aparato coordenador-repressor da civilização, sem a qual não sobreviveríamos frente às hostilidades do universo externo.
     Por outro lado, sempre há o remanescente do passado em meio às transformações do presente.Daí que temos que conviver com os "brucutus" de plantão, figuras pré-históricas, dinossauros da agressividade incontrolada ou da heterossexualidade convencional já ultrapassada.E isso mesmo com o novo papel social e econômico do gênero feminino, dentro de um mundo de transformação cultural e psicológica muito grande, pelo dinamismo absurdo da tecnologia.O futuro ainda é um mangue de possibilidades.
     Claro que também as mulheres, o gênero feminino, também priva de suas prerrogativas de caráter paleontológico cultural e sexual.Daí que moças escondam dentro de si muito do ideário de suas bisavós, com a persistência da defesa - ainda que de forma discreta ou subentendida -  de valores ultrapassados(dentro das necessidades econômicas) que ainda suprem necessidades psicológicas que não foram completamente equacionadas, substituídas, apesar da lógica ideológica do consumo e diversão que norteia a padronização de nossa sociedade.Coisa lógica: nossa espécie passa por processo de mutação.
    Daí que eu defenda  pau nos cultuadores da mentalidade de agressividade do "pau".São brontossauros da cultura, não querem ver o que acontece por serem seres incapazes de olhar para dentro dos recessos do inconsciente sombrio em que nos construímos(nos destruímos?).Isso porque são seres construídos a partir de alicerces de preconceitos e lugares comuns, de juízos de valor a-críticos.
     A agressividade humana ainda é um mistério, somos bichos perigosos. Sou meio intolerante com quem não sabe controlar os monstrengos que habitam o interior do humano. Mesmo o civilizado esconde um bárbaro dentro.E esse se mostra quando um cidadão pacato, por exemplo, defende massacre policial, é tolerante com o estupro( mais ou menos na linha do “quem mandou ser tão ostensiva assim?”), tem lá suas homofobias (deus o livre de saber que todos têm fantasias homossexuais) disfarçadas ou não, suas histrionias   pseudo-religiosas, e assim por diante, em meio à intolerância, essa grande cadela babante que nunca sai do cio.Estamos longe de uma verdadeira evolução.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Eu, os russos e Tchekhov


Outro dia estava lendo um conto de Tchekhov e fiquei pensando sobre isso.Atualmente leio poucos romances, ando metido mais em leituras de ensaios e poesia.E jogo minha vida fora em desenhos e pinturas, na maior parte do tempo.Mas esse autor russo me chama a atenção por ser um tipo de russo-anti-russo, ao mesmo tempo.Isso porque estamos acostumados - pelo menos eu estou - com aqueles espaços de dramaticidade autêntica, muitas vezes tendendo ao melodramático ,da cultura russa, com o desenvolvimento sempre de uma dinâmica de ação dramática.Dostoievski é o maior exemplo, levando isso ao paroxismo do delírio de ordem psicológico, ele, autor universal que nos abriu os porões e recessos inconscientes de nossas paixões por meio de seus personagens, frequentemente alucinados.Como a vodka, Dostoievski nos enlouquece.
     Não sou grande conhecedor da literatura russa, exceto da leitura de seus clássicos mais conhecidos.Adoro a música erudita criada por esses eslavos, não só a do final do século XIX, como também a do século XX.O grupo dos cinco, as canções folclóricas russas(tinha um amigo, russo nativo morando por aqui, que me forneceu vasto material que ouvi), Tchaikovski, Mussorgski,Scriabin, Prokofiev, Shostakovich, Stravinski(o mais ocidentalizado, uma genialidade- certamente o maior gênio musical russo! - mais comedida, exceto nos primeiros balés, mas sempre um russo exótico no temperamento profundo), todos esses autores sempre ouvidos, fruídos até as entranhas de minha alma, durante décadas já. Frequentemente mergulhados em concepções estéticas de cunho romântico ou simbolista - com soluções formais atendendo a essas concepções -, onde o emocional nunca se deixa domar pelos princípios formais mais rígidos.Lembro-me de meu entusiasmo por Maiakovski durante meu entusiasmo juvenil pelo comunismo.Pobre Vladimir, alma delicada demais para aqueles tempos de terra "ainda não grávida para a liberdade"! Em síntese: fala-se em arte russa e logo pensamos em emoções intensas, tudo virando de cabeça para baixo de uma hora para outra.Não é à toa que houve revolução por lá, revolução que virou um socialismo que se desmoronou tão rápido como um castelo de cartas.Tudo muito radical(coisa não muito típica em nosso morno temperamento latino-tropical), imprevisível como as emoções dos personagens dostoievskianos, extremado, passional, mesmo quando elaborado filosoficamente.Penso nos futuristas russos, em Kandinski na pintura.Ou na teosofia que foi tão forte por lá, até o advento da revolução de 17.Misticismo e religiosidade até a boca; até o comunismo por aquelas bandas assumiu aspectos místicos, com Lênin virando o primeiro santo do socialismo.A Rússia é o que sobrou da antiga civilização bizantina, como bem afirmava Toynbee, ainda viva em muitos aspectos em seu vasto território.A arte russa teve influência marcante e decisiva na cultura ocidental, sendo, posteriormente, esmagada em seu alvoroço vanguardista pelo stalinismo e sua hedionda doutrina do realismo socialista.Mas o que se criou ficou.Aí pensamos em Tchekhov.Pouco a ver com materialismo comunista advindo depois de sua morte, mas pouco a ver também com o misticismo simbolista russo tradicional, religioso.
      Os contos assim como o teatro de Tchekhov não são construídos a partir de um esqueleto dramático de ação.Tudo se desenvolve a partir de um todo envolto em "atmosferas".Um personagem de Dostoievski acaba por nos demonstrar o que pensa através da ação, do impulso, de falas longas e exasperadas, irresistíveis; coisas mais ou menos como " se Deus não existe, então tudo é permitido " ou "se a Rússia não se salvar o mundo estará perdido!".Dá para imaginar a gente falando isso do Brasil?Bem, nós já estamos perdidos mesmo...Quem sabe o mundo já tenha se perdido de si próprio.Em todo caso, no desenrolar da narrativa de Tchekhov ,as falas são desenvolvidas num plano temporal mais estático, reflexivo, frequentemente melancólico, às vezes cínico.O tempo parece parar, daí que ele é ótimo para transposições imaginárias atemporais.Não há catarse, seja através da fala ou da ação, induzida ou não dentro de nosso imaginário subconsciente.Nada vai jorrar, nada vai explodir, se a tragédia vier, virá mansamente, como uma morte estranha e silenciosa que desce mansamente de um céu cinzento e nos envolve.Uma atmosfera feita de ações e palavras e gestos sutis, pequenos detalhes despidos de qualquer grandiloquência, um concerto de câmara em acordes de baixo sem dissonâncias aparentes.Estas estão nos interstícios da ação, como estão nos interstícios entre nossa alma e nossas atitudes cotidianas.Música de câmara, não sinfônica.Mais um Stravinski neo-clássico que um  Tchaikovski melodramáico, umTolstoi das grandes narrativas - por sinal,  autor que li em minha juventude, meses lendo Guerra e Paz, tantos personagens, eu sem maturidade alguma para ler aquilo tudo - ou de Anna Karenina.
     Aos dezenove anos vi uma encenação de A Gaivota de Tchekhov.Passei uma noite em claro pensando: quero ser artista.Mas não sentia talento algum em mim, salvo um impulso irrefreável para colocar emoção em movimento por meio da forma.Acabei me restringindo às formas matemáticas e fiquei na engenharia até jogar tudo pela janela depois de ouvir uma sinfonia de Mahler. Ah, o velho romantismo histérico e juvenil, citado, meio de passagem, de maneira um tanto melancólica pelo autor russo, tanto nos contos que li quanto em seu teatro!
     Há algo de cético e amargo em sua obra.Há muito de cético e amargo na vida.Mas a ânsia de poesia e beleza a enche de significado , mesmo assim.O tempo devora a ilusão, o relógio da existência parece sincronizado com o nada, enquanto as pessoas seguem a vida em meio a futilidades, vaidades e egoísmos sem fim ou siginificado.Sempre senti essas coisas nos contos que li de Tchekhov.Seu teatro também deve estar cheio dessa concepção filosófico-existencial.
     Acho até que o nosso Machado é mais amargo, mais pessimista.Qual o problema?Na ação política  ou prática, pessimismo, tanto quanto otimismo, os dois podem ser muito perigosos.Na arte não, porque a arte é ilusão, as coisas se resolvem dentro das possibilidades dos planos imaginários que nos roubam da realidade da vida por ser ela, vida, insuficiente para todas as coisas presas em angústia, desalento ou esperança nas atmosferas do existir.Como nos contos que li.Na vida, como nos contos de Tchekhov, uma certa ausência de enredo.Enredo?Quem escreveu as linhas e enredos que assumimos e falamos?Fala, Dostoievski! Estaremos perdidos?Perdeu-se a Rússia? Pior de tudo: não aprendi a ler russo do original.Que lástima!

quarta-feira, 8 de maio de 2013

A ave de Minerva por trás de seu olhar

E a coruja se olhou no espelho e se perguntou: por que olhos tão grandes? Imagino o príncipe trágico da Dinamarca com a caveira da ave em suas mãos, perguntando: saber ou não saber, eis a questão.A ave de Minerva enxerga longe, enquanto nós teimamos em não olhar a curta distância.Poderia também ser a caveira do Mr. Magoo pelo tamanho, um primo de algum alien, talvez.
     A natureza é sempre misteriosa em suas artimanhas arquitetônicas.O que não se vê oculta belezas e harmonias estranhas, a morte revelando mais do que se imagina.E se  coruja, caveira de coruja em suas mãos(asas), perguntasse: voar ou não voar?Largaria a vida de boemia, deixando de ser uma predadora, passando a ser tranquila comedora de minhocas como um pardal?Não creio.A natureza da coruja é como a de algumas pessoas: só se encontram mesmo na noite.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Contemplação


Contemplação  dela...

     Pudesse eu gozar de algum repouso, escondido nas curvas de teu corpo, o sol brandindo um silêncio de escuro, protegido em teu calor indiviso de fêmea.Vejo-te roubada ao zunir dos astros, de toda essa maquinaria insana do mundo, decaída em ti mesma em teu próprio repouso, entre o sol e a sombra; quem te viu mal sabe que ao te ver já morreu um pouco, queimou-se por ver certa verdade de beleza desmaiada em teu repouso.Mas onde miram teus olhos que mal vejo? Esse olhar em que me arrebatei a mim próprio na busca de sua marinha liquidez.Em que intervalo entre o sol e a sombra foi esculpida essa forma de carne humana tão bela? Em que lugar na noite escura brilham teus olhos ou flutua, nua, tua alma de mulher?
    Não te possuo como não posso possuir os astros; tudo o que tu escondes esplende na nudez de tua carne adornada de tanto desejo; ao longe, tantos montes e vales não valem as curvas em que te faz enquanto ente animal, vestal de cândida pureza disfarçando, quem sabe,a fluidez demoníaca de um todo que alicerça o que há entre homem e mulher.O sal do oceano recolheu-se, quem sabe, sob a solidez ventral de tua nudez.
    Não me resigno ao puro desejo, ao ver-te tão bela, quem sabe imortal imagem criada por um sonho que atravessou uma noite de minha vida e selou-me em silêncio ao tocar-me os lábios com os teus.Pressinto toda essa umidade orvalhada em teu interior, teu sangue, os humores escondidos por baixo da pele, os odores de floresta e deserto escondidos, quem sabe tudo isso a carregar algo do silêncio das estrelas,de sóis apagados, do marulhar de oceano repleto do sal que imagino impregnar tua pele.
     Coroar-te-ia, princesa dos sonhos, rainha dos desejos, satânica encarnação dos demônios que nos roubam a paz, quem diria que tua simples visão me roubasse a lucidez, a perguntar-me se existo mesmo ao contemplar-te em tua nudez.
      Não, simplesmente, coroar-te-ia mulher.
      E teu ventre luzindo por entre uma sombra desmaiada pelo sol , ah!, dar-te-ia a minha alma, o que resta desse meu corpo já destinado aos vermes, a recostar meu rosto em seu calor, sonhando ir além dessa vida de humilhação e descaso.E teu seio, maduro como um fruto plasmado pelo hálito mais profundo da mais insaciável fome, quem sabe envolvê-lo -ele tão elegante e pleno - sob as pobres mãos minhas que tanto desvivem em desilusão.Teu corpo, como um todo, é um pouco da silhueta do universo que pressinto e sei não existir, um pouco como eu, um pouco como tu, um pouco como essa ânsia de um dia te ter, enquanto as fiandeiras organizam nosso destino em rocas imponderáveis.Poderia, talvez, percorrer-me   nos pensamentos esculpidos pela imaginação, pelos longos caminhos de tuas coxas, tuas pernas tão distendidas além das mais vastas planícies que jamais alcancei, jamais alcançarei.
    Insinuo-me no interior de meu próprio desejo, os olhos palpitam de dor, tanto quanto meu coração, no vago esforço de te prender sob as margens frias do frio branco papel.Enquanto, em decúbito repousas, suave como uma princesa de areia, reinas para sempre na imagem decalcada em minhas retinas.E pranteio-me  ao te ver distante, ao te ver ausente a cada vez que te contemplo e te perco  um pouco mais, em meio à roda do destino que nunca pára  como a tua imagem em minha mente.Ai de mim!Exilado de ti, como alguém exilado de um país desconhecido de si.

                                                                    8 de maio 2013

pinturas e desenhos postados em 7/5






segunda-feira, 6 de maio de 2013

Autognose sem gnose alguma


Em um poema, Manuel Bandeira dizia ansiar por ter, em seu último poema, a paixão dos suicidas que se matam sem nenhuma razão.Descontando as análises psiquiátricas que poderiam advir disso , meu deus !, que sede de transcendência !Coisa de poeta, coisa de humano.Onde encontraria eu um tipo de paixão como essa?
     Cheguei à conclusão de que muitas das paixões que me vitimam não são originárias de onde imagino. Tanto tempo passado, depois de ter lido tanta coisa de psicanálise, depois de ter sido psicanalisado durante cinco anos - em período da juventude, não aceitando ter alta e assumindo de vez as incuráveis neuroses com as quais teria que conviver até o fim de meus dias -, depois de ter que exorcizar muita coisa dessa psicanálise às custas de um sociologismo meio marxista ou de um culturalismo feroz que procurava uma precisão objetiva impossível, depois disso tudo passei a ler e reler coisas sobre o assunto, aspectos cuja imaturidade das primeiras leituras, a inexperiência com as várias facetas da convivência humana, em suma, a imaturidade intelectual e de vivência me impediam de discernir com maior clareza. Muita coisa a que abjurei, reintegrei em meu armário conceitual, ainda que cheio de mofo e teias, com critérios comparativos mais claros que deixaram evidentes as lacunas de pensamento que não me permitiram discernir melhor as soluções. Sentir passou a ser uma solução, sentir mais, mesmo  com o custo de sacrificar certos expedientes da razão que nos aliviam de certos sofrimentos. Soluções, quando as há, passaram a vigorar no plano utópico, já que para muito problema não há mesmo  solução; certos dilemas e contradições são impossíveis de resolução nessa vida.
     Pelo imaginário tentei recompor-me nessa vida. Não deixa de ser um viés idealista, mas isso não pode ser lamentado porque, em muitas situações, torna-se a única forma de levar a vida .Quem sabe a forma baudelairiana da bebida, da virtude ou da poesia como maneiras enfrentá-la. Se efetuarmos a comparação,  em certa medida Freud dizia o mesmo, lamentando  ele que
 em sua época  a ciência fosse tão limitada em entender os mecanismos bioquímico-mentais que se ligam ao prazer ou sofrimento. Mesmo engatinhando, hoje sabemos muito mais sobre o assunto, ainda que haja um universo de mistérios cercando o funcionamento da mente humana.
     Sempre tentei me entender usando conceitos e elementos analíticos tirados de outros campos, especialmente de psicologia, assunto que, depois de estética e história da arte, mais me interessou, após meu início de juventude apaixonado pelas ciências exatas, uma época em que acreditava nos poderes inefáveis do deus-razão.Com o tempo, mais e mais me via, ao contrário, prisioneiro do demônio des-razão.
     Não bastasse isso, me pergunto de que valeram tantas e tantas horas tentando refletir sobre os elementos psicológicos ou neuróticos envolvidos nos amores soçobrados. Desenvolvi uma mania de querer percorrer todos os interstícios de eventos emocionais passados das mulheres com que me relacionava. Claro, isso com relação às quais eu desenvolvera um sentimento profundo. Nunca tive qualquer explicação clara, sempre fiquei no meio do caminho. Sempre houve pistas, nunca caminhos precisos. Pelo menos, não havia aquela precisão em que depositava fé quando de minhas andanças pelas searas dos reinos matemáticos e científicos. As psicologias são mangues epistêmicos, algo que parece ter-se desviado da estética e tentado a ciência.
     Tenho lá meus momentos de fúria, assim como tenho os de reflexão ou choro.Como qualquer pessoa sou vítima de desejos e ansiedades. Estes podem se ampliar quando as expectativas são maiores. Todavia, não é mole controlá-las; tudo nos direciona para as expectativas, mormente as falsas .A máquina do mundo é cruel e as engrenagens com que funciona ou atua, ou seja, as pessoas, estão sempre se engastando, o ranger é constante e machuca os ouvidos, ou a alma, o que é muito pior. Luto constantemente contra um impulso de profundo desprezo pela humanidade. Mas o que seria eu sem ela; eu sou a humanidade, a humanidade sou eu. Mas não sou o centro do universo.Ai de mim!O velho grito grego ainda ressoa em nossas têmporas pós-modernas.
    Crer, crer em alguma coisa, principalmente no humano.Não há princípio divino nem dentro, nem fora de mim, apenas o universo silencioso e as pessoas.Sim, as pessoas ou,pelo menos, o que  aparentam ser pessoas. Não é fácil; todos os mecanismos da visão lógica me induzem a pensar que o ser humano é um projeto equivocado , dentro desse aparente projeto maior sem programação alguma que parece ser a vida, a não ser para os que acreditam em vontades superiores e inteligências(?) superiores nos regendo. Sorte dessas pessoas; gostaria mais de ser um pagão, longe nas neuroses cristãs que me foram incutidas. Mesmo assim, fosse eu um grego clássico da antiguidade, não seria o que sou, minha cabeça seria outra. Acreditaria eu nos deuses? Por aqui, só acredito nas deusas; essas, contudo , de carne e osso.

    Por outro lado, detesto me acomodar no pessimismo. Sei que muito dele é oriundo de dimensões estranhas e desconhecidos de meu inconsciente. Parte dele formado a partir da educação. Ou seria que outra parcela dele seria ausência de mulher? Vai saber... Mal consigo enxergar a ponta de iceberg que sou, o que se esconde abaixo da linha d’água me assusta, mas não tenho como evitar o mergulho .Preferível o afogamento para se ver, do que ficar torrando sob o céu, ressequido ao sol da inoperância da vida besta de sentimentos fúteis.
     Ainda que não tenhamos as explicações, ainda que, certamente, nunca as teremos, pelos menos podemos tentar nos aproximar de alguma verdade, nem que seja a nossa.Se isso ficar no espanto, no sentimento que plasma a tragicidade e o desconsolo, que seja!A vida é assim mesmo, não podemos alterar todo os mecanismos das fiandeiras do destino, mas podemos mexer com os cordões,  dar uma arrematada no traje feito de alguma forma. Ainda que não acredite no encontro de uma natureza superior que nos comande e nos coloque em contado com uma transcendência, ainda sou obrigado a brigar com tudo isso, dentro e fora de mim. Porque sonho em adiar o encontro com a dama da foice, ainda que possa sonhar que, em seus braços, encontre em sua face, numa outra dimensão de tempo e espaço, todas as amadas e mães que tive ou gostaria de ter .Nossa, mas que egoísmo! Humano, demasiadamente humano...

domingo, 5 de maio de 2013

pinturas e desenhos postados em 6/5










um rosto desenhado

Não, quem desenha sabe do que falo.Talvez o mesmo aconteça ao se descrever algo por palavras.Quando se conhece a pessoa, cai-nos um espanto; quando não, o mesmo acontece.Pode ser que nunca venhamos a conhecer a pessoa, mesmo que essa seja a nossa própria, descrita num auto-retrato.Mas, salvo se o narcisismo for além do imponderável, no auto-retrato busca-se menos a própria beleza que se vê do que o interior da alma que se des-vê.Mas o que se falar de um rosto que se desenha, apenas porque o achamos belo?Pode-se desenhar um rosto belo por vários motivos.Mas e a sensação de beleza a que ele nos conduz, como descrever?Repentinamente nos vemos batendo nas portas da alma do retratado.Mas , se as nossas próprias parecem cerradas...É sempre um esforço vão, tenha-se ou não talento.São apenas pistas a que corremos atrás com a sensação da inutilidade do esforço.


             Um Rosto Desenhado

     Nem sei de onde és, para onde vais
Por tua face deslizo minha imaginação
por entre os ninhos de dúvida
que o tempo fez em pedra na mente.

Ah, demente!
Atrás das formas inatingíveis da inexistente beleza
a beleza que não existe ou resiste
apenas insiste, abrasiva.... persiste
em bater na alma pelas portas do olhar.

Pensar: quem és, de onde és, o que pensas?

Apenas linhas no desalinho de minha vida,

todo  rosto esconde algo que não é
deixa ver o que é por trás dos detalhes.

Quem sabe o olhar irônico, a sobrancelha arqueada,

um pássaro volteando na planície de seu rosto.



E eu, em desgosto, na plenitude franqueada

de pensar  a linha, o lápis devorando a ansiedade do branco

no vão esforço de querer dizer algo que não se pode.

A beleza passa, mal sei o que é
não sei se o vulto que espanta, encanta
não sei se um momento de estranheza.
Sei
ficaria melhor no mergulho de meu interior
mas as aves de dentro batem as asas, as mãos, antes desvividas
agora revividas pela vontade antes gasta
querem os céus, esses céus que passam com o encanto
o mistério do rosto da moça que passa, devasta
todo o silêncio mórbido que empedrava o coração.

Mais que vulto, insulto à minha coerência desvalida
essa muleta com que tento levar a vida
mas pouco me revela, desvalida
a fragilidade minha à beleza perdida.

Ela, vindo e passando, distante
silhueta cantante, um sol penetrando a noite...

Nos traços finos e escuros violando o branco
um rosto  surge em meio ao que sou
da lembrança do que vi, sobra o espanto.
A moça que passa é um suave
encanto.
Por trás do papel, apenas o silêncio do canto.

sábado, 4 de maio de 2013

Divação 4/5

     A vida é um conto sem enredo.Na verdade, ela me parece mais um conto atmosférico, por assim dizer; um conjunto de ações, narrações e percepções de sensibilidade mergulhados numa bruma envolvente de silêncio e indefinição.Pode ser que, em algum momento, uma ação dramática se desenlace dissolvendo as névoas que nos envolvem, mas mesmo assim permanece a incerteza sobre as paisagens que nos circundam, pouca clareza sobre o céu ou (des)firmamento que vislumbramos ao longe.Andamos no passo dos vermes, isso se nosso referencial for mais distante, mais ou menos o correspondente a outro planeta ou galáxia.As palavras e símbolos brotam em nossa mente, saem facilmente pela boca, ficam dependurados em nossos lábios, breves inflexões sobre a indefinição.Definimos trajetórias cotidianas mas, sem saber, somos enganados por tudo, por nossos referenciais apegados a nossos egos, limitados que são em realidade, ilimitados em imaginação. E, pela imaginação, essa realidade aparente que no fundo é da mesma matéria da névoa que nos envolve, conseguimos suportar melhor as coisas, matéria fútil e plasmada de  devaneios, o inverso do que somos se transformando na face aparentemente clara das definições do pensamento.Ainda que a maior parte do que somos permaneça submersa nas dimensões inatingíveis de nosso inconsciente, essa outra estranha matéria tão enevoada quanto as maiores névoas ou poeira cósmica que paira no espaço, continuamos a nos apegar a certezas criadas pela necessidade de viver e sentir.Porém, se tudo o que não for sentir for morte, então, sem que saibamos , já somos essa névoa que nos envolve, a aparência sendo a essência, a essência uma presença de outra coisa diferente que, no fundo, somos nós mesmos.
     Ainda que me pergunte isso , diariamente, ainda que algum sopro de deuses ou de intuições me afirme que me iludo com a ilusão que forjo a partir da névoa que nos envolve, eu continuo a me sentir flutuando na indefinição de pouca densidade dos fatos, esperando que tudo se adense de forma perene, esperando as horas, os tempos, as presenças, as pessoas, os amores e todo esse turbilhão que não passa da parte vazia de um cheio que me complementa.

pinturas postadas em 4/5