"O teu sangue-frio não consegue ficar febril; corrre-te nas veias água gelada,mas nas minhas está o sangue a ferver, e ver tanta frieza à minha frente deixa-me desvairada".
Esta é uma fala da personagem Cathy, heroína(se é que se pode chamar assim) juntamente com seu par, Heathcliff, um homem apaixonadamente doente por ela e que, por ver a frustração desse amor, a morte de sua amada,resolve dar vazão ao que de mais intenso e demoníaco pode haver num ser humano."Assombra-me Cathy, além dos umbrais do silêncio da morte, pode me roubar a paz do sono com teu espectro de alma que vaga, mas não me deixe só!".Quer jura maior de amor do que isso?
Esse clima passional e sombrio do livro O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Bronte sempre me fascinou.Sua leitura,demorada e atenta aos diálogos, instilou-me - ou, pelo menos, juntamente com outras obras e situações de vida, ajudou a instilar - uma visão meio fatalista do amor, uma concepção de romantismo ligada ao pathos, ao descontrole, ao voto pela eternidade.O amor impossível, os amantes que, mesmo após a morte, têm seus espíritos vagando juntos pelas charnecas cinzentas, o vento eterno batendo, o vento real, o vento do tempo, o vento que nunca traz a resposta, apenas a insinua.
Nada a ver com os tempos de hoje.Não vejo a possibilidade de moças contemporâneas espelharem-se no limiar de loucura e sanidade que permeia as ações da personagem Cathy.Cathy não precisava de "incrementos" químicos ou artificiais para passar de um estado para outro.Hoje em dia, seria devidamente medicalizada, enquanto Heathcliff seria demovido de sua obsessão pela mocinha por meio de alguma terapia.Como pensar em amor eterno, além da vida, nos tempos de hoje?Já se tornou difícil até o temporário...
Claro, há muita declaração de pseudo-romantismo no dia a dia, quando, na verdade, não passa de sentimentalismo disfarçando certo encantamento erótico; o qual, diga-se de passagem, sempre tem os dias contados.Existe uma grande diferença entre o dramático e o melodramático, entre o trágico e o sentimental.
Andei relendo algumas páginas do livro e mergulhei, além do meu tempo, naquele tempo e numa dimensão de minha memória que comungava dessas expectativas e atmosferas de descontrole emocional e amoroso, a furiosa turbulência que mistura idealismo e erotismo amoroso.
Querer amar é sempre querer privar um pouco do sabor da morte, antes de nos refestelarmos com seu silêncio, às custas do corpo que tudo nos conduz e a tudo nos ilude por meio dos sentidos.
Irresistível!Estou mais velho, mas uma parte minha que se criou ali, que vivenciou as páginas do livro ou as passagens de cenas das adaptações cinematográficas que vi, isso tudo continua encapsulado vivo numa dimensão da memória que não consigo definir.Ou seja : a morte dos amantes não mata o amor.Este é eterno mas não pode ser vivenciado pelos amantes pelo resto da vida, simplesmente porque sua eternidade está no momento.Um minuto, uma hora, um beijo até, tudo isso pode valer mais que uma vida? Abstratamente, o amor pode perdurar.Concretamente, os próprios amantes encarregam-se de destruí-lo.
Céus, eu, tão cético por sistemática de pensamento, tão idealista e perdido por falta de sistema do sentimento.Que fazer: cada um age de acordo com suas contradições.
Aí leio outra passagem, onde Cathy diz que há amores que são como folhas na vegetação, movendo-se, adaptando-se de acordo com o vento, de acordo com o tempo; mas há os que são como rochas, inamovíveis, ficando ali o tempo inteiro.Podemos pisar as rochas, fazer de conta que não as vemos, mas elas estão ali, fixas na paisagem da existência, resistindo ao açoite do vento e do tempo.
Ah, essa Emily Bronte escreveu um só romance em sua curta vida!Nem precisava mesmo viver mais depois de fazer algo como isso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário