A Sagração da Primavera faz cem anos de sua
primeira apresentação, em Paris.Foi um marco na história da música e do
balé.Música de Stravinsky, coreografia de Nijinsky, cenários e trajes de
Nicolas Roerich.Este último foi quem recolheu o material visual e
sonoro(ícones, pinturas, trajes camponeses, canções folclóricas russas) para
que os dois primeiros construíssem o balé.
Já
faz décadas que ouço a Sagração, morrerei ouvindo.A primeira vez que vi uma
encenação sua foi no exterior, numa coreografia de Béjart.A de Nijinsky só vi
em filmes. Achos as duas maravilhosas, distintas;
a
primeira mais estática, cheia de movimentos angulosos, paradas, a segunda mais
dinâmica e gestual; parecem se complementar na expressão da música selvagem e
rítmica de Stravinsky, um contraponto entre o apolíneo e o dionisíaco através
do universo coreográfico.
Imagino o escândalo que a música de Stravinsky com a coreografia de Nijinsky devem ter causado
na platéia, o público acostumado aos
maneirismos dos rituais clássicos do balé da época.Ainda hoje são coisas
modernas, atuais, causam estranhamento.A sensação de beleza, a estesis dos
gregos, apenas aumenta com sucessivas audições da obra.Um universo musical e
plástico inconfundível na sua estrutura geral.
Como dizia o filósofo alemão Adorno, o público rejeitava o moderno ,
suas dissonâncias, por não aceitar as próprias dissonâncias criadas nas pessoas
pela modernidade.
Quando da apresentação da Sagração, havia muito interesse sobre o
primitivismo de culturas ancestrais,pelo folclore de países de outros
continentes, pelo exótico de outras culturas que não a tradicional européia;
daí que o material folclórico russo era tão apreciado, seus exotismos tão
degustados, daí o sucesso de balés como o Pássaro de Fogo e Petrusca.Mas poucos
esperavam algo tão radical como a Sagração.Golpe de gênio de um compositor
jovem.Música genial, coreografia, idem.Cenários e trajes fora dos padrões da
época, nada parecido com o balé da época.Um tema: um ritual de morte, evocando
as forças primitivas da natureza em danças ritualísticas, uma tragédia sombria
anunciada desde o início.Nada romântico, nada adocicado.
Pode
hoje não causar escândalo, já que estamos familiarizados com toda essa
maravilhosa história do balé moderno, de Béjart a Pina , mas tudo começou
ali.Qualquer pessoa, amante ou não de balé e de música de concerto, não deixa
de ter uma reação de estranhamento ao ver uma encenação da Sagração.
Eu
me lembro claramente da primeira vez que ouvi o balé integral, ainda lá pelos
meus vinte e poucos anos de idade. Conhecia trechos dele, já que sonoplastas
frequentemente os usavam na tv ou no
cinema.O impacto foi monstruoso, das maiores e mais estranhas emoções estéticas
que experimentei até hoje.Aquela música furiosamente estranha, planos e quadros
rítmicos se sucedendo numa atmosfera de ritual(na verdade, um ritual de
morte!), mexendo com o interior das estranhas, uma música que irresistivelmente
me concitava ao movimento, uma vontade maluca de voar dançando no espaço com as
cordas estridentes, os sincopados ritmos dos metais, as percussões mexendo com
a epiderme dos nervos, uma vontade de renascimento como o próprio ritual do
roteiro do balé apresentado. O que é,
afinal, um grande impacto estético senão um renascimento?
Vida e morte, assim é a Sagração.Vivemos e morremos, pelos sentidos,
durante sua audição.Mesmo levando em conta que a genialidade construtiva de
Stravinsky dispôs, com engenho e habilidade, uma série de materiais e canções
folclóricas russas de acordo com uma estrutura musical que se pautava pelo
ritmo( por sinal,a única coisa natural
em qualquer música, de qualquer gênero), não podemos deixar de sentir o
crescimento de algo violento dentro de nós, a libertação de um bárbaro
escondido sob a capa civilizada dos bons modos e costumes que nos permitem
viver em sociedade mas, ao mesmo tempo, nos privam de algumas felicidades
instintivas naturais.Isso tudo sublimado pelo poder da música, da
instrumentação, uma complexidade racionalizada expressando a irracionalidade,
um milagre da inteligência e da
sensibilidade. Eros e Tanatos harmonizados pela imaginação humana e sua
apreciação. Expressão do mundo moderno pela música: assim é a Sagração.Polirritmia,
aspereza, politonalismo, uma solução intelectual servindo-se do
barbarismo.Hoje, torna-se um tanto difícil enxergarmos a Rússia primitiva que
está por trás desse denso tecido musical, mas está lá; a Rússia pré-cristã,
pré-eslava, a antiga Rússia dos povos citas.
Identificamos
essa música com toda maquinaria ensandecida dos tempos modernos, essa maquinaria
e tecnologia que serviria tão bem as forças da destrutividade humana na
primeira guerra mundial.A Sagração da Primavera foi o prelúdio de um grande
inverno de morte e destruição que começaria um ano depois das ensurdecedoras vaias que tentaram interromper sua
apresentação. O sacrifício final da dançarina seria, no futuro, o sacrifício do
soldado desconhecido nas trincheiras imundas da guerra.E, claro, tudo isso
perfeitamente entrosado com a angulosidade dos movimentos da coerografia nijinskiana,
grupos de bailarinos movimentando-se em eurritmias meio mecânicas, efetuando desenhos no palco, organizações de movimento meio bárbaras,
movimentos estranhos e sincopados dos bailarinos, como se estivessem sendo
arrastados para a gravidade natural dos corpos em direção à terra para, no fim,
tudo isso culminar na dança final sacrificial da bailarina, resistindo morrer
mas, enfim, sucumbindo às forças naturais de extinção da existência, dançando
até a própria morte.Simplesmente divino, como devia ser divino ver Nijinsky
dançar(ele não dançou na Sagração, restringindo-se apenas a feitura da
coerografia).
Só
vendo, só ouvindo.Quem viu sabe do que falo.Quem ama balé não escapa da paixão
pela Sagração.Como dizia o esteta Herbert Read, “se o século vinte tivesse que
ser lembrado, no futuro, por uma única obra de arte, esta seria a Sagração da
Primavera”.