sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O inferno é azul


O inferno é azul.Ponto, não se descute mais.Estavam certos os egípcios antigos que atribuíam essa cor à dimensão temerária, além dessa vida de aquém morte.Se como dizia um poeta, cinza é a teoria, verde é a árvore da vida, não hesito em afirmar: azul é o inferno.Para demonstrar, algo que não se pode em verdade demonstrar, uso sempre um famoso auto-retrato de Van Gogh em azul; tudo azul, traje, fundo, olhar, além do oceânico azul do céu, mais além dos confins da torpe realidade de cotidianos sombrios.Sim, o coração voador do holandês genial, ensandecido pelo amor e pelo desespero, disse tudo: o inferno é azul.
     De todos os maravilhosos auto-retratos que ele fez, esse é o que mais me toca a alma, o que me levou a , durante uma visita no Museu D'Orsay, ficar paralisado diante dele, arrebatado por uma alma completamente pura e despida diante dos olhos, usando recursos tão limitados como cores ou pincéis, translúcida em sua arrebatadora beleza infernal, infernalmente azul.Já com lágrimas nos olhos, fui retirado do transe por um horripilante turista japonês que queria que eu tirasse uma foto dele ao lado do quadro.Mas que tolice!O quadro não havia, havendo sim uma complexidade de azuis que se manifestavam na organização de uma coisa que podemos chamar, por meio da linguagem da pintura, de um quadro.
     Sim, meu caro Van Gogh, cá entre nós, de um cachimbeiro para outro - não ouso falar de um pintor para outro porque pintores são seres mortais e você, para mim, já pertence ao reino das entidades -, você tinha razão: o inferno é azul.Tantas vezes vi o inferno da alma em seus azuis desesperados!Sim, havia os amarelos, tão dolorosos, mas esses sempre tinham um quê de esperança; como os vermelhos, vulcânicos, apaixonadamente postados ao lado dos verdes, as paixões em conluio amoroso pelas cores de sua paleta, tão amorosa e desesperada como sua sensibilidade que não podia caber nesse planeta.Mas o azul, o azul!O azul da Noite Estrelada, aquela noite azulada mergulhada em tamanha escuridão da alma em azul escuro, azul prussiano angustiado, as estrelas desesperantes gritando em meio ao caos do universo, a grande noite universal do homem apreendida por seu coração generoso de artista puro e bom e honesto e ridiculamente apaixonado por tudo e por todos, com convém a uma alma como a sua.
    Sim, o inferno é azul!Como vermelho, amarelo  e azul, no amálgama de sua alma de poeta da paleta, são os tons de essência dessa sua tão generosa alma, essa tão atormentada alma que se traduziu em linha, forma, cor e coração, que nos chegam hoje pelo mistério da arte da pintura, do seu engenho , do seu esforço de artista e homem dotado de tantans paixões, tantas falácias que nos fazem tão frágeis, como tudo o que é frágil nesse ponto oscilante do universo que habitamos, tão vago e impreciso em seu destino como qualquer um de nós, seja simples ou complexo, animal ou mirenal, poeta ou pintor, essas duas coisas que em você encontraram a tradução irreconhecida pela insensibilidade dos seus irmãos, encontraram a verbalização precisa do que prescinde de verbo.
     Sim, meu amado "suicidado pela sociedade", ainda navego nos azuis daquele seu auto-retrato, ainda flutuo nas pinceladas nervosas e sábias de seu engenho e arte, afogado naquelas duas esferas de desespero, seus olhos, no oceano caloroso de seu atormentado universo desabrido em...azul.
       Sim, se cinza é a teoria, verde é árvore da vida, vermelho é o calor de seu amor, azul é o inferno.Porque inferno e céu sempre estarão ligados um ao outro , por meio de seu coração aflito, meu caro maluco holandês voador, um coração muito maior que todos os girassóis, que todos os sóis que em esplendorosa grandeza por você nos foram legados.

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