quarta-feira, 5 de junho de 2013

Aquele que preferiu o leão ao cordeiro

    Um professor meu gostava de citar um ditado italiano que rezava  que mais valia um momento de leão que anos de cordeiro.Isso se aplica a poucas pessoas, as que estão no momento certo, na hora certa, tomando a decisão que, certa ou errada para essas pessoas, acaba dando certo para a história da humanidade; humanidade esta que pode estar pouco ligando para o destino dos que acertam contas com a ousadia.
     Haja ousadia para romper com tudo e salvar um sonho, qualquer que  ele seja! Normalmente somos inibidos quanto a isso, a tendência maior é o acomodamento. E então vamos para a Paris na virada do século dezenove para o vinte, o movimento impressionista, a sociedade burguesa triunfante,  as artes – sempre as artes!- dando espaço para insatisfações mais profundas das pessoas, novas necessidades de ampliação da sensibilidade , a tecnologia triunfante criando a ilusão do paraíso terrestre, um ex-corretor de bolsa de valores, amante de pintura e pintor  em fim de semana, resolvendo virar sua vida de cabeça para baixo , em busca de um sonho de beleza e realização artística. Assim se faz a dialética da história da arte, a unidade na diversidade, a partir da diversidade, um homem, uma vontade instaurada num processo coletivo.Para se usar palavras  de um verso de Pessoa: Deus quer, o homem sonha, faz-se a obra.A obra que é um homem e seus desejos e duros esforços, uma trajetória cheia de altos e baixo e incertezas, como a própria vida, e o amor, o incomensurável amor que vai além da curta existência desse homem, o amor que nos chega pelas suas pegadas na terra, pelo que deixa de si enquanto rastro nesse mundo, um caminho iluminado que para sempre, enquanto houver homem no universo, iluminará o coração de tantos outros homens e mulheres.Pois, falo isso tudo por querer falar de um homem, um artista, um grande artista, chamado Paul Gauguin.
    7 de junho é data de nascimento de Paul Gauguin, um dos vértices da santíssima trindade da pintura moderna, juntamente com Van Gogh e Cézanne.
     A vida desse grande artista é algo de extraordinário, já tendo originado livros e filmes sobre o assunto.Foi alguém que ganhou dinheiro e, posteriormente, passou a detestá-lo("o dinheiro que tudo corrompe e apodrece!"); orientou-se por uma existência burguesa e, depois dos trinta anos, renegou essa mesma existência.Morreu no Taiti, corroído pela sífilis, detestando os valores convencionais da civilização, em busca de uma pureza natural ligada à vida instintiva mais pura, em meio a paisagens deslumbrantes, pessoas simples de alma , um fervor desenfreado pela pintura.Não era indivíduo de trato fácil, muito menos frágil como pessoa, emocionalmente, como Van Gogh; tinha quase que uma certeza meio arrogante sobre o valor de sua pintura, ao contrário do holandês, prisioneiro de seus problemas psicológicos e de um certo cristianismo masoquista.Esse cristianismo ocidental que orienta tudo pela culpa, coisa desprezada por Gauguin.Ele queria superar a culpa; daí não me espantar seu fascínio pelas culturas e religiões que observara fora da Europa civilizada, burguesa, prática, cheia de valores avessos à beleza; a mesma mentalidade que mataria, à sua maneira, a existência de uma alma extraordinariamente sensível e generosa como Van Gogh.Tudo que não é sentimento é morte, toda forma ampliada de sentir pode nos levar à morte.
     Gauguin influenciou Van Gogh, tanto quanto foi influenciado por este.Amo profundamente a obra dos dois, acho-as complementares entre si.Tiveram um relacionamento conturbado entre si, mas que rendeu frutos para os dois e para nós que agora temos o privilégio de ver a obra desses dois grandes artistas.Nos dois um profundíssimo amor pela natureza e pelas pessoas, um amor mais terreno, carnal, quase plácido pelo lado do francês, bastante religioso e explosivo pelo lado do holandês com suas noites estreladas. Duas figuras atormentadas por problemas artísticos, sofrendo o peso da degradante situação da falta de dinheiro.Dinheiro, dinheiro, dinheiro: tê-lo  ou não ,sempre um pouco de acaso.
     A pintura de Gauguin emana calor por todos os lados, cheia de mistério em seus acordes, aquela música silenciosa das esferas das estrelas que desce sobre o véu de maia da pintura; os vermelhos e os tons de terra, o próprio céu, tudo é inundado de calor.Sua técnica é meticulosa; seu aprendizado impressionista com outro grande pintor e seu mestre, Pissarro, de muito lhe valeu.Para ele, se uma maçã tiver que ser violeta para que, em melhor acorde de cores, o conjunto da pintura funcione melhor, então que assim seja; os deuses da arte assim pedem. Foi um dos homens cuja obra me despertou amor pela pintura.Fico deslumbrado com a multidão de tons e passagens superpostas de cores.Ao mesmo tempo, bicho do mato nascido em seio de urbanidade, que dimensão estranha atingiu ele por meio de sua sensibilidade, a ver toda a carga de repressão que a civilização(e mais especificamente, a civilização do dinheiro) impõe sobre a natureza humana.
     Sobra então a arte, esse espaço de ilusão e sonho por onde se pode suportar a hostilidade do mundo, das coisas, das pessoas, da mediocridade de uma vida excessivamente média.Vejo quadros dele e me liberto desse mundo durante o tempo que os vejo; tenho certeza de que seus paraísos pessoais criados em tela são até mais belos  que os vistos ao natural. Sim ; são abstrações.A pintura é uma abstração da realidade, essa sempre inapreensível em sua essência. Tolo engano tentar explicá-la, realidade, melhor senti-la e transferi-la para tintas e telas, recriando uma outra realidade que atinja o coração alheio pelas garras suaves da sensibilidade.
    Ah, será que algum dia verei o Taiti?Claro que não verei suas mulheres nativas esculpidas em carnagens terrosas e vulcânicas, aqueles olhares desprendidos em certa melancolia natural, a nos perfazer num pessimismo oriundo do choque entre a natureza e a realidade, o instinto e a convenção usual de nossa vida social, coisa que atormentou a vida de Gauguin, evidente em suas cartas.
     À sua maneira, um selvagem, um civilizado onde o processo de "domesticação" não funcionou bem.Acrescido de inteligência e sensibilidade extraordinária deu naquilo!Alguém para o qual a pintura foi um exercício de profundíssimo estudo e concentração, numa carreira, por assim dizer, até que curta perto de outros pintores.Mas um resultado muito longo, uma beleza que nos toca fundo, um festival de cores inundando nossa alma.
    Desesperado, Gauguin uma vez tentou se matar e não deu certo; artistas, com frequência, não são bons em coisas práticas.Mas morreu pouco depois, não sem antes deixar um monumento, a  pintura "Quem somos, de onde viemos, para onde vamos".

    Quem sou, de onde vim, para onde vou, pergunto eu, sem saber porque nasci, sem ter pedido para nascer e destinado a  morrer, provavelmente sem querer.Não sei a resposta mas, frequentemente, sei para onde vou: para a contemplação de uma pintura de Gauguin, das poucas coisas que dão significado à minha vida.

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