Um
professor meu gostava de citar um ditado italiano que rezava que mais valia um momento de leão que anos de
cordeiro.Isso se aplica a poucas pessoas, as que estão no momento certo, na
hora certa, tomando a decisão que, certa ou errada para essas pessoas, acaba
dando certo para a história da humanidade; humanidade esta que pode estar pouco
ligando para o destino dos que acertam contas com a ousadia.
Haja
ousadia para romper com tudo e salvar um sonho, qualquer que ele seja! Normalmente somos inibidos quanto a
isso, a tendência maior é o acomodamento. E então vamos para a Paris na virada
do século dezenove para o vinte, o movimento impressionista, a sociedade
burguesa triunfante, as artes – sempre
as artes!- dando espaço para insatisfações mais profundas das pessoas, novas
necessidades de ampliação da sensibilidade , a tecnologia triunfante criando a
ilusão do paraíso terrestre, um ex-corretor de bolsa de valores, amante de
pintura e pintor em fim de semana,
resolvendo virar sua vida de cabeça para baixo , em busca de um sonho de beleza
e realização artística. Assim se faz a dialética da história da arte, a unidade
na diversidade, a partir da diversidade, um homem, uma vontade instaurada num
processo coletivo.Para se usar palavras de um verso de Pessoa: Deus quer, o homem
sonha, faz-se a obra.A obra que é um homem e seus desejos e duros esforços, uma
trajetória cheia de altos e baixo e incertezas, como a própria vida, e o amor,
o incomensurável amor que vai além da curta existência desse homem, o amor que
nos chega pelas suas pegadas na terra, pelo que deixa de si enquanto rastro
nesse mundo, um caminho iluminado que para sempre, enquanto houver homem no
universo, iluminará o coração de tantos outros homens e mulheres.Pois, falo
isso tudo por querer falar de um homem, um artista, um grande artista, chamado
Paul Gauguin.
7 de
junho é data de nascimento de Paul Gauguin, um dos vértices da santíssima trindade
da pintura moderna, juntamente com Van Gogh e Cézanne.
A
vida desse grande artista é algo de extraordinário, já tendo originado livros e
filmes sobre o assunto.Foi alguém que ganhou dinheiro e, posteriormente, passou
a detestá-lo("o dinheiro que tudo corrompe e apodrece!"); orientou-se
por uma existência burguesa e, depois dos trinta anos, renegou essa mesma
existência.Morreu no Taiti, corroído pela sífilis, detestando os valores
convencionais da civilização, em busca de uma pureza natural ligada à vida
instintiva mais pura, em meio a paisagens deslumbrantes, pessoas simples de
alma , um fervor desenfreado pela pintura.Não era indivíduo de trato fácil,
muito menos frágil como pessoa, emocionalmente, como Van Gogh; tinha quase que
uma certeza meio arrogante sobre o valor de sua pintura, ao contrário do
holandês, prisioneiro de seus problemas psicológicos e de um certo cristianismo
masoquista.Esse cristianismo ocidental que orienta tudo pela culpa, coisa
desprezada por Gauguin.Ele queria superar a culpa; daí não me espantar seu
fascínio pelas culturas e religiões que observara fora da Europa civilizada,
burguesa, prática, cheia de valores avessos à beleza; a mesma mentalidade que
mataria, à sua maneira, a existência de uma alma extraordinariamente sensível e
generosa como Van Gogh.Tudo que não é sentimento é morte, toda forma ampliada
de sentir pode nos levar à morte.
Gauguin influenciou Van Gogh, tanto quanto foi influenciado por este.Amo
profundamente a obra dos dois, acho-as complementares entre si.Tiveram um
relacionamento conturbado entre si, mas que rendeu frutos para os dois e para
nós que agora temos o privilégio de ver a obra desses dois grandes artistas.Nos
dois um profundíssimo amor pela natureza e pelas pessoas, um amor mais terreno,
carnal, quase plácido pelo lado do francês, bastante religioso e explosivo pelo
lado do holandês com suas noites estreladas. Duas figuras atormentadas por
problemas artísticos, sofrendo o peso da degradante situação da falta de
dinheiro.Dinheiro, dinheiro, dinheiro: tê-lo
ou não ,sempre um pouco de acaso.
A
pintura de Gauguin emana calor por todos os lados, cheia de mistério em seus
acordes, aquela música silenciosa das esferas das estrelas que desce sobre o
véu de maia da pintura; os vermelhos e os tons de terra, o próprio céu, tudo é
inundado de calor.Sua técnica é meticulosa; seu aprendizado impressionista com
outro grande pintor e seu mestre, Pissarro, de muito lhe valeu.Para ele, se uma
maçã tiver que ser violeta para que, em melhor acorde de cores, o conjunto da
pintura funcione melhor, então que assim seja; os deuses da arte assim pedem.
Foi um dos homens cuja obra me despertou amor pela pintura.Fico deslumbrado com
a multidão de tons e passagens superpostas de cores.Ao mesmo tempo, bicho do mato
nascido em seio de urbanidade, que dimensão estranha atingiu ele por meio de
sua sensibilidade, a ver toda a carga de repressão que a civilização(e mais
especificamente, a civilização do dinheiro) impõe sobre a natureza humana.
Sobra
então a arte, esse espaço de ilusão e sonho por onde se pode suportar a
hostilidade do mundo, das coisas, das pessoas, da mediocridade de uma vida
excessivamente média.Vejo quadros dele e me liberto desse mundo durante o tempo
que os vejo; tenho certeza de que seus paraísos pessoais criados em tela são
até mais belos que os vistos ao natural.
Sim ; são abstrações.A pintura é uma abstração da realidade, essa sempre
inapreensível em sua essência. Tolo engano tentar explicá-la, realidade, melhor
senti-la e transferi-la para tintas e telas, recriando uma outra realidade que
atinja o coração alheio pelas garras suaves da sensibilidade.
Ah,
será que algum dia verei o Taiti?Claro que não verei suas mulheres nativas
esculpidas em carnagens terrosas e vulcânicas, aqueles olhares desprendidos em
certa melancolia natural, a nos perfazer num pessimismo oriundo do choque entre
a natureza e a realidade, o instinto e a convenção usual de nossa vida social,
coisa que atormentou a vida de Gauguin, evidente em suas cartas.
À
sua maneira, um selvagem, um civilizado onde o processo de
"domesticação" não funcionou bem.Acrescido de inteligência e
sensibilidade extraordinária deu naquilo!Alguém para o qual a pintura foi um
exercício de profundíssimo estudo e concentração, numa carreira, por assim
dizer, até que curta perto de outros pintores.Mas um resultado muito longo, uma
beleza que nos toca fundo, um festival de cores inundando nossa alma.
Desesperado, Gauguin uma vez tentou se matar e não deu certo; artistas,
com frequência, não são bons em coisas práticas.Mas morreu pouco depois, não
sem antes deixar um monumento, a pintura
"Quem somos, de onde viemos, para onde vamos".
Quem
sou, de onde vim, para onde vou, pergunto eu, sem saber porque nasci, sem ter
pedido para nascer e destinado a morrer,
provavelmente sem querer.Não sei a resposta mas, frequentemente, sei para onde
vou: para a contemplação de uma pintura de Gauguin, das poucas coisas que dão
significado à minha vida.
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