Confesso que sinto um profundo amor pela
juventude.Não a minha, já perdida, esvaída por entre as mãos do destino, mas
aquela que sempre se apresenta como a terra distante e virginal a ser povoada
pela vontade humana.Fica-se mais velho e parece que apenas os defeitos
aumentam, não as virtudes, as poucas que cultivamos; um festival de manias e
intransigências, apenas acelerando a consciência da inexorável decadência
física.Daí é um passo ao rancor universal, cósmico, contra tudo e todos,
principalmente os mais jovens.Uma tremenda ausência de humor.Aquele rancor que
se esconde de forma sutil nos conselhos, no pouco caso a respeito da
precipitação por ordenação hormonal, aquele cultivar do universo cadavérico do
passado.E o que é o passado senão um cadáver?Carrego essa múmia dentro de mim,
mas não vou usar suas faixar para espantar os outros.Prefiro então a
decrepitude de minha nudez moral ou
ética.Mas os mais velhos dirão que ninguém nunca tem ética, que isso é uma
abstração e que os jovens nunca sabem disso e blá, blá,blá.Há os pecadilhos de
juventude e os pecadilhos- por sinal, não poucos!- de velhice.Que lástima! A
envelhecer assim, preferível a morte.Melhor morto enterrado que zumbi fingindo
ser a fonte da vida.Em todo caso, um pouco de paciência com erros da
inexperiência alheia é como caldo de galinha para doente, não tendo nenhuma
contra-indicação.
Então seria mais fácil não amar?Por que então não sentir, no desapego
que, aparentemente, nos livraria dos grilhões dos desejos?Não sei, parece tudo
meio idealizado, em meio às máquinas desejantes e de desejos manipulados em que
nos transformamos ou nos transformam,ainda que seja à nossa revelia.Em todo
caso, tudo que se vive, ao se tentar reviver se transforma numa necrologia, o
que acrescenta certa dor e melancolia na busca do sentimento perdido. Mais
fácil então seria não viver, mas a chama da vida trava luta renhida contra a
constante treva da morte.E dentro de nós piscam as duas coisas, nossa alma
entre o céu e o abismo, sem contar a aflitiva memória que nos ilude sobre a
passagem do tempo, colocando as coisas, eventos e afetos como se tivessem
sempre ocorrido instantes atrás, como se as coisas não mudassem.
É, o negócio não é fácil, mais fácil seria a amorfia do pouco sentir,
mas isso não dá mesmo.Ou dá, dependendo de como trabalhamos essas necrologias
das coisas e desilusões que se forjam constantemente.A vida vem, estúpida-
indelicada, a bruta, nem nos pede passagem-, nos atropela quando não
esperamos.E se pensarmos nisso tudo, se ficarmos a pensar demais na vida, ela
vem e passa e finda. Em verdade, finda com a gente e continua na dela.Talvez
esse negócio de amor, qualquer que seja, não passe de um logro que a própria
vida nos impõe para que a sirvamos em sua sanha de eternidade.Apenas nós é que
não seremos eternos. Salvo contraditório da assanhada e petulante árvore da
sabedoria tecnológica, todo dia replantada pela ciência.Mas viver eternamente,
para quê?
A vida me parece
absurdamente feroz e sem sentido, parecendo ter uma lógica própria que pouco
tem a ver com o que chamamos de nossa lógica.Essa , lógica, juntamente com o
que denominamos de razão humana, parece se desprender da própria matéria amorfa
da existência, construída pelos sentidos e suas impressões, no sentido vão de
controlar toda essa amorfia.Tudo e todas as coisas, inclusive pessoas, são
construídas como abstrações por meio de nossas impressões.Ou seja, não sabemos
de nada, perdidos na fúria incompreensível da realidade.Como um quadro
impressionista, tão belo de longe e um monte de borrões ao nos aproximarmos
dele.É , as pessoas são mesmo como quadros impressionistas.Mas nem todos os
quadros são interessantes ou bem feitos.
E
surge aquele momento em que cai a consciência- quem sabe, o desalento- de que
pouco lucramos em nos esforçar por ser
algo que não somos.O peso da máscara incomoda, o gasto com o verniz das
convenções não compensa, as cores com que nos tingimos não produzem qualquer
acorde que nos agrade.Talvez, o momento
em que nos dedicamos ao nosso maior luxo: o desprendimento.A vida é cinza, a
cor nós a criamos pela imaginação.E nela, um pouco longe da ação, sustentamos
uma verdade de imprecisão lógica à razão mas não ao coração.
Já demandei muito esforço no ledo engano
de me fingir herói em aventuras
inexistentes e criadas pela mente sonhadora. Não resgatarei mais donzelas quase
perdidas- que se percam em seu destino, na própria liberdade do erro- nem
colocarei fogo nos castelos infames criados pela infinidade de meus
inimigos.Quem sabe a eles, inimigos, frondosas árvores onde os veja enforcados
pela minha imaginação, à maneira do poeta romântico alemão que isso almejava ao
lado de uma simples casa em bucólica paisagem.Inimigos invisíveis,
inexistentes, nenhum maior do que o que se albergou no fundo de meu coração,
entrincheirado em medo e covardia.Mas não vou dourar a pílula do falso
conhecimento.Chega a hora em que se diz :chega!O mundo não vai se adornar de
louros(ou loiras) para saudar minhas falsas vestes rasgadas; mas há um certo
alívio em aliviar o crédito indevido com a hipocrisia.Esta cansa um bocado;
suas engrenagens sempre engastam, como nossos nervos ou músculos fatigados pelo
tempo.
A
vida existe antes da teoria, a sensação antes da ação.Nada impede ação conjunta
com sensação.Mas a razão, contudo, às vezes nos inibe no contato com a própria
vida.Nenhuma teoria pode ir além da vida, apenas serve para interpretá-la e
convivermos com ela.Mas confesso que, depois de tanta teoria decalcada na alma
e na mente, tive que me livrar de muita coisa aprendida, como alguém que se
desnudasse para se sentir melhor nadando numa praia, em meio à escuridão
constante de um céu de indefinições, o brilho estranho e calmo de lua nos dando
a esperança de que podemos voltar às areias, mesmo sem roupas.Mas quem é que
não teme o afogamento, esteja ou não vestido?
Não existe chicote
analítico que dome a ferocidade da realidade.Quando muito o bicho se assusta,
mas não foge, não perde as presas.A razão é como um domador de fala baixa e
fina.Grita, esperneia, brande o instrumento de intimidação, mas a fera continua
sempre livre e solta.No circo da vida, todos somos palhaços de maquiagem ruim e
gestos para lá de conhecidos.Até que um dia ele pega fogo...
Outro dia revi um filme
de Jacques Rivette, A bela Intrigante.Quatro horas de duração. Aconselho para
quem tiver tempo, paciência e interesse.Um filme intrigante e refinado.Feito em
91.Uma profunda reflexão, plástico-cinematográfica, sobre o ver, o sujeito e o
objeto, a partir do olhar de um pintor, alter-ego do próprio diretor.Ou sobre o
voyeurismo do artista.Ou de qualquer um. Ver é sempre algo inquietante quando
nos dispomos a questionar o que vemos, o que se oculta por trás das aparências
mas também faz parte delas.Quando você pinta ou desenha, parte do erótico que
motiva a observação vira ciência da criação.Toda criação tem uma ciência oculta
de leis imprevisíveis, mas procedimentos exatos.O artista, qualquer que seja, é
sempre um esgrimista.
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