terça-feira, 3 de dezembro de 2013

"Ah, você por aqui, ainda vivo?!"

"Ah, você por aqui, ainda vivo?!"

Às vezes, ao rever alguém com quem perdi contato há muito tempo, solto essa.Muitos já me recriminaram por essa fala, acusando-a de mau gosto, de morbidez.Será?
    Talvez isso tenha a ver com o tabu do assunto morte.Mas me pergunto: que assuntos são mais relevantes nessa vida que amor e morte?Freud dizia-se impressionado quanto ao fato de que a maioria das pessoas se dedicam, em conversas, a falar mais de relações afetivas(ou sexuais) e trabalho do que  sobre qualquer outro assunto.Schopenhauer fazia uma aposta com seu taberneiro, ganhando sempre a mesma, de que a maioria dos cavalheiros que sentavam nas mesas contíguas à sua, dificilmente falariam de outro assunto que não fosse mulheres, negócios e...cavalos.Questão de época.Parece que hoje predomina sexo e trabalho.Mais trabalho, pelo visto, até entre mulheres.Quem diria... Em todo caso, na curta passagem nossa por este espetáculo furioso e sem sentido que é a vida, atuando em papéis certos ou errados numa peça absurda escrita por um louco(só mesmo o grande bardo inglês para definir tão bem a vida!), todo mundo tem relógio com hora marcada com a velha senhora.Cada dia ganho é perdido.Um dia a mais na vida que se ganhou, um dia a menos na futura necrologia que será talhada quando não mais estivermos aqui.
    Todo dia pranteio meus mortos, os já efetivados e os que se efetivarão.Depois do cinquenta, parece-me que qualquer tempo a mais já é lucro. Qualquer alegria ou sensação de plenitude ,uma dádiva.Viver sofrendo pouco, então, um divino luxo.E reencontrar alguém, depois de muito tempo, ainda andando e falando comigo, vejo tal coisa como um milagre, tão grande quanto eu estar aqui escrevendo essas bobagens.Tudo é enigma, tudo é incerto e frágil.Daí, vejo aquela minha expressão como um júbilo, uma alegria.Independente, claro, do estado físico da figura revista; já que a vida cobra, o tempo passa e deixa marcas e a saúde é sempre algo em suspenso.Vivo sempre nessa suspensão de pavor cósmico.
    Por isso, não vejo essa minha expressão como algo deselegante, e sim como algo realista.Só morremos de fato e para o mundo quando não mais falam de nós.Mas tudo no tempo se desfaz, tudo tende a ser como o inevitável futuro traçado no discurso de Pessoa no poema A Tabacaria.Morrer é uma forma especial de se estar ausente de tudo, uma insociabilidade forçada, um prolongamento forçado da projeção da sombra que somos.Vivencio os mortos, vivencio os vivos.Viver demais de lembranças é perigoso pois nos atém ao passado, esse cadáver que carregamos ignorando o ranço de mau odor que tem.Mas que fazer: o homem é memória e percepção em ação.Posso achar a vida uma porcaria, mas enquanto houver essa chama estranha que nos faz a ânsia de continuar a vida, de manter a carcaça de ossos deambulando por aí, não fujo da raia.Por enquanto; afinal, não sei como agiria se a velha senhora agora batesse em minha porta.
     Viver e envelhecer, como disse certa vez Stravinsky, é construir um cemitério atrás de nós.Sim, ele já estava velho, então, mas criativo antes de tudo.
   Por isso, bem humorado, continuarei a usar e expressão.Não direi coisas banais no estilo " como está envelhecido", "como está conservado" ou "como não mudou nada".Apenas direi: que milagre você estar aqui!Como é milagroso que sintamos ainda coisas como amor, ódio ou medo da morte, em meio ao enganoso vazio que nos cerca.

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