Li em uma reflexão de Fernando Pessoa que somente a arte fica, todo o resto passando, seja ele império, convicção, credo, estado ou nação.Tem lá sua lógica histórica, apoiada em fatos.
Particularmente o que me espanta - e a única coisa relevante da vida é a que nos causa espanto, para o bem ou para o mal- é como sentimentos vividos há tanto tempo podem ser reanimados pelo contato com a arte.
Nunca mais pude ter as mesmas sensações de paixão física, amorosa ou sensorial que experimentei na juventude.Tentar revivê-las me parece um esforço inútil, algo independente de nossa vontade. Aceitar velhice e morte é duro aprendizado.Com frequência repetimos de ano ou, pior hipótese, somos expulsos da escola sem saber.A vida passa e o acúmulo de experiências, sejam elas fracassadas ou vitoriosas, cria uma película que nos transforma em seres afastados de uma certa dimensão de nosso passado, como se o passado se transformasse num tipo de país estrangeiro cuja língua esquecemos em parte, muito vocabulário perdido mas uma certa noção de articulação gramatical mantida.Coisas do inconsciente; afinal, a maior parte de nós é sempre um mistério inatingível, muitos personagens em peças desconexas sem articulação lógica de enredo.Ainda que sempre haja os que se adaptam melhor aos mecanismos de normose, afastando um pouco as neuroses inerentes.Adaptação ao meio.Coisa bem humana que fez a espécie triunfar sobre as outras.
Mas o passado é sempre o passado, um cadáver que carregamos em nossas entranhas mesmo sem saber, uma estranha força do sangue com que nos projetamos ao futuro, o qual não existe, a não ser enquanto possibilidade.Enfim, difícil saber como se articula esse acúmulo de sentimentos em nossa ordem presente, a única coisa que realmente há.Óbvio: dispensando, no caso, digressões de física relativística.
Nunca provarei de novo aquele "esplendor na relva" de que falava um poeta, varrido pelo vento do tempo e jogado às frias rochas da memória, encrustado como um musgo estranho, ao mesmo tempo repulsivo e fascinante.
Assim como não terei o mesmo vigor físico de minha juventude, não poderei amar, sentir as coisas como naquela outra época.Sem contar que o império dos hormônios tem data para sua auto-extinção.Talvez viver não passe de uma forma de descobrir novas formas de amar.É o que nos resta, a se contrapor às forças do ódio e da extinção da vida que estão ao nosso redor e mesmo dentro de nós.
Mas eis que, outro dia, ouvindo uma sinfonia que já ouço há décadas, repentinamente me vi embriagado numa atmosfera de encantamento, mistério e angústia que em muito me lembrava o que sentira há décadas atrás.Sou eu, ouvindo e sentindo isso agora, renovando dentro um cadáver escondido nas memórias sentimentais?Não sei, acho isso muito misterioso.Como se estivesse em contato com a alma do compositor, assim como tantas vezes percebi algo que talvez pudesse chamar de alma em tantos quadros, canções ou poemas.O milagre da arte que consegue manter vivo uma espécie de chama, uma chama que a vida em nós criou e se acendeu num momento de contemplação artística e ainda se mantém viva.Todo o resto se foi, para nunca mais.
Sim, não nos banhamos duas vezes na mesma água do rio.Se é rio, a água corre, se não corre não é rio, é o lago da morte.Nada é eterno, tudo passa, sonhamos com a eternidade, sonhamos a eternidade mas temos os braços curtos para as tarefas, o coração se endurecendo e a mortificação das esperanças se insinuando pelas artérias de nossa vontade.Tudo conspira contra o sonho.E o ser humano é um grande sonho.Quem sabe, um soluço no meio do universo.
Mas para nosso ledo engano, vem a arte e dribla tudo.A arte nos traz o sonho de eternidade, tanto para quem faz como para quem recebe o que é feito, mesmo de forma imperceptível.
Durante uma hora voltei a ter meus vinte e poucos anos.Passou.Sobrou o sonho de eternidade que voltou a se instilar em meio aos sons.Milagre de voltar no tempo através do mergulho em sensações perdidas.
Só mesmo a arte para consertar esse calhambeque que é a vida.Mesmo que ele só rode até a próxima esquina.É : só a arte fica e dura, porque somente a arte é.
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