"Ah, você por aqui, ainda vivo?!"
Às vezes, ao rever alguém com quem perdi contato há muito tempo, solto essa.Muitos já me recriminaram por essa fala, acusando-a de mau gosto, de morbidez.Será?
Talvez isso tenha a ver com o tabu do assunto morte.Mas me pergunto: que assuntos são mais relevantes nessa vida que amor e morte?Freud dizia-se impressionado quanto ao fato de que a maioria das pessoas se dedicam, em conversas, a falar mais de relações afetivas(ou sexuais) e trabalho do que sobre qualquer outro assunto.Schopenhauer fazia uma aposta com seu taberneiro, ganhando sempre a mesma, de que a maioria dos cavalheiros que sentavam nas mesas contíguas à sua, dificilmente falariam de outro assunto que não fosse mulheres, negócios e...cavalos.Questão de época.Parece que hoje predomina sexo e trabalho.Mais trabalho, pelo visto, até entre mulheres.Quem diria... Em todo caso, na curta passagem nossa por este espetáculo furioso e sem sentido que é a vida, atuando em papéis certos ou errados numa peça absurda escrita por um louco(só mesmo o grande bardo inglês para definir tão bem a vida!), todo mundo tem relógio com hora marcada com a velha senhora.Cada dia ganho é perdido.Um dia a mais na vida que se ganhou, um dia a menos na futura necrologia que será talhada quando não mais estivermos aqui.
Todo dia pranteio meus mortos, os já efetivados e os que se efetivarão.Depois do cinquenta, parece-me que qualquer tempo a mais já é lucro. Qualquer alegria ou sensação de plenitude ,uma dádiva.Viver sofrendo pouco, então, um divino luxo.E reencontrar alguém, depois de muito tempo, ainda andando e falando comigo, vejo tal coisa como um milagre, tão grande quanto eu estar aqui escrevendo essas bobagens.Tudo é enigma, tudo é incerto e frágil.Daí, vejo aquela minha expressão como um júbilo, uma alegria.Independente, claro, do estado físico da figura revista; já que a vida cobra, o tempo passa e deixa marcas e a saúde é sempre algo em suspenso.Vivo sempre nessa suspensão de pavor cósmico.
Por isso, não vejo essa minha expressão como algo deselegante, e sim como algo realista.Só morremos de fato e para o mundo quando não mais falam de nós.Mas tudo no tempo se desfaz, tudo tende a ser como o inevitável futuro traçado no discurso de Pessoa no poema A Tabacaria.Morrer é uma forma especial de se estar ausente de tudo, uma insociabilidade forçada, um prolongamento forçado da projeção da sombra que somos.Vivencio os mortos, vivencio os vivos.Viver demais de lembranças é perigoso pois nos atém ao passado, esse cadáver que carregamos ignorando o ranço de mau odor que tem.Mas que fazer: o homem é memória e percepção em ação.Posso achar a vida uma porcaria, mas enquanto houver essa chama estranha que nos faz a ânsia de continuar a vida, de manter a carcaça de ossos deambulando por aí, não fujo da raia.Por enquanto; afinal, não sei como agiria se a velha senhora agora batesse em minha porta.
Viver e envelhecer, como disse certa vez Stravinsky, é construir um cemitério atrás de nós.Sim, ele já estava velho, então, mas criativo antes de tudo.
Por isso, bem humorado, continuarei a usar e expressão.Não direi coisas banais no estilo " como está envelhecido", "como está conservado" ou "como não mudou nada".Apenas direi: que milagre você estar aqui!Como é milagroso que sintamos ainda coisas como amor, ódio ou medo da morte, em meio ao enganoso vazio que nos cerca.