Confesso que, ultimamente, ando me esforçando para ver as pessoas como
transparentes, como uma espécie de entidade indefinível que não pode me ferir,
nem mesmo me tocar.Seria parecido com uma situação em que o meu eu se desfaz
por meio de uma vontade imaginária que, ainda que não me coloque no centro do
mundo, faz-me infenso aos efeitos
psicológicos causados pelas interferências interpessoais do dia a dia.Que fazer
se vejo as pessoas como algo transparente? E porque eu também não seria visto
como algo transparente por elas.Sábio era o poeta que li e dizia ser a
dependência dos outros uma servidão, a
necessidade do outro a mais degradante situação de escravismo.Somos humanos por
esta servidão, desumanos por não aceitá-la.Pode ser, quem sabe uma paradoxo na
existência.
Em
verdade, penso lá eu com meus botões, talvez as pessoas sejam mesmo
transparentes, como o ar, que não tocamos mas sempre nos envolve, sempre dele
respirando a continuidade de nossa existência.Sim, as pessoas são
transparentes; não porque vemos a essência delas, mas porque vemos através
delas: coisas , paisagens, eventos, situações ridículas, traições e torpezas,
mentiras e confissões, tudo revelado
pela ausência aparente do material. No final, todos os efeitos que vemos, todos
os resultados aparentes produzidos por nossos sentidos podem nos iludir: a
mesma transparência do ar aos nossos olhos, não evita ela que vejamos o azul do
céu, a névoa, os efeitos da poluição pela dispersão da luz através da “transparência”
de micropartículas que não vemos.Assim como há a refração da luz, assim também
há a refração dos sentimentos pela ação dos outros; um desvio de trajetória de
sentimentos pela mudança de “meio”. Um teatro absurdo de sombras, assim é a
vida, um espetáculo criado por transparências projetadas pela essência interior
dos outros que não poderíamos nunca ver, apenas pressentir.
O ar que nos cinge e não o vemos, o ar que
tem gases e matéria sutil e que não vemos, o ar que existe, podemos até fingir
que não, mas não o tocamos, escapa-se-nos por entre as mãos, mais fluido que
qualquer líquido desejoso que circula na transparência corpórea que também
somos.Quero ver a concretude das pessoas mas apenas vejo sua transparência.
Existem elas mesmo, ou não passam de espectros meio translúcidos que insisto em
tocar mas não os toco em essência?Como o
ar , sempre nos escapando, uma constante ausência oca de silêncio, como os
estranhos ruídos que surgem na fricção da transparência aérea do vento com as
folhas.As pessoas existem, o ar existe, o mundo existe e resiste, em meio à
confusão de meus sentidos e seu constante dom de iludir.
Por
trás dos mecanismos estranhos das leis físicas, na transparência do ar, a mesma
epígrafe da transparência humana , a mesma que nos conduz à incomunicabilidade
com todas as coisas e seres, apesar de nossa ânsia de sermos mais do que somos,
a aparência de um contato pela capacidade humana de abstrair , a distração
constante de tudo que habita no nosso interior e sempre fingimos não ouvir.
O
silêncio é uma grande transparência de vazio, as pessoas são como sussurros que
teimamos em captar em meio ao ruído furioso do cosmo, sons sem substância onde,
talvez, os gemidos de dor ou prazer sejam as coisas mais expressivas.No leito,
no hospital ou na cova, a realidade última de tudo?Sei que a vida é
insuficiente, o que fazer?Então vou amenizar os efeitos ruins, fingir que as
pessoas são transparentes.
Sim,
as pessoas são transparentes; posso andar no meio delas como se não existissem,
fingir ser um fantasma e ninguém me notará, amigo invisível de mim mesmo. Por
sinal, quem me nota, realmente, além da
transparência que sou? E, mesmo que o acaso me roubasse dessa vida de
transparências baças, ainda assim continuaria , de forma transparente, a criar
uma ilusão de que passeei numa vida de
coisas concretas, de pessoas concretas, fatos, emoções concretas, aos olhos que
nos enganam ou nos entorpecem a alma de beleza, enquanto na transparência da
vontade se projeta o sonho do futuro, sempre de transparente incerteza.Na
transparência do vácuo que envolve todos os planetas.A partir de hoje, as
pessoas serão transparentes.Assim fez-se a luz, na imagem de mim mesmo que se
transformou em Deus.Transparentemente,
algo ausente, como sempre.
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