domingo, 1 de setembro de 2013

As pessoas são transparentes

     Confesso que, ultimamente, ando me esforçando para ver as pessoas como transparentes, como uma espécie de entidade indefinível que não pode me ferir, nem mesmo me tocar.Seria parecido com uma situação em que o meu eu se desfaz por meio de uma vontade imaginária que, ainda que não me coloque no centro do mundo,  faz-me infenso aos efeitos psicológicos causados pelas interferências interpessoais do dia a dia.Que fazer se vejo as pessoas como algo transparente? E porque eu também não seria visto como algo transparente por elas.Sábio era o poeta que li e dizia ser a dependência dos outros  uma servidão, a necessidade do outro a mais degradante situação de escravismo.Somos humanos por esta servidão, desumanos por não aceitá-la.Pode ser, quem sabe uma paradoxo na existência.
   Em verdade, penso lá eu com meus botões, talvez as pessoas sejam mesmo transparentes, como o ar, que não tocamos mas sempre nos envolve, sempre dele respirando a continuidade de nossa existência.Sim, as pessoas são transparentes; não porque vemos a essência delas, mas porque vemos através delas: coisas , paisagens, eventos, situações ridículas, traições e torpezas, mentiras e confissões,  tudo revelado pela ausência aparente do material. No final, todos os efeitos que vemos, todos os resultados aparentes produzidos por nossos sentidos podem nos iludir: a mesma transparência do ar aos nossos olhos, não evita ela que vejamos o azul do céu, a névoa, os efeitos da poluição pela dispersão da luz através da “transparência” de micropartículas que não vemos.Assim como há a refração da luz, assim também há a refração dos sentimentos pela ação dos outros; um desvio de trajetória de sentimentos pela mudança de “meio”. Um teatro absurdo de sombras, assim é a vida, um espetáculo criado por transparências projetadas pela essência interior dos outros que não poderíamos nunca ver, apenas pressentir.
     O ar que nos cinge e não o vemos, o ar que tem gases e matéria sutil e que não vemos, o ar que existe, podemos até fingir que não, mas não o tocamos, escapa-se-nos por entre as mãos, mais fluido que qualquer líquido desejoso que circula na transparência corpórea que também somos.Quero ver a concretude das pessoas mas apenas vejo sua transparência. Existem elas mesmo, ou não passam de espectros meio translúcidos que insisto em tocar mas não  os toco em essência?Como o ar , sempre nos escapando, uma constante ausência oca de silêncio, como os estranhos ruídos que surgem na fricção da transparência aérea do vento com as folhas.As pessoas existem, o ar existe, o mundo existe e resiste, em meio à confusão de meus sentidos e seu constante dom de iludir.
    Por trás dos mecanismos estranhos das leis físicas, na transparência do ar, a mesma epígrafe da transparência humana , a mesma que nos conduz à incomunicabilidade com todas as coisas e seres, apesar de nossa ânsia de sermos mais do que somos, a aparência de um contato pela capacidade humana de abstrair , a distração constante de tudo que habita no nosso interior e sempre fingimos não ouvir.
     O silêncio é uma grande transparência de vazio, as pessoas são como sussurros que teimamos em captar em meio ao ruído furioso do cosmo, sons sem substância onde, talvez, os gemidos de dor ou prazer sejam as coisas mais expressivas.No leito, no hospital ou na cova, a realidade última de tudo?Sei que a vida é insuficiente, o que fazer?Então vou amenizar os efeitos ruins, fingir que as pessoas são transparentes.

    Sim, as pessoas são transparentes; posso andar no meio delas como se não existissem, fingir ser um fantasma e ninguém me notará, amigo invisível de mim mesmo. Por sinal, quem me nota,  realmente, além da transparência que sou? E, mesmo que o acaso me roubasse dessa vida de transparências baças, ainda assim continuaria , de forma transparente, a criar uma ilusão de que passeei  numa vida de coisas concretas, de pessoas concretas, fatos, emoções concretas, aos olhos que nos enganam ou nos entorpecem a alma de beleza, enquanto na transparência da vontade se projeta o sonho do futuro, sempre de transparente incerteza.Na transparência do vácuo que envolve todos os planetas.A partir de hoje, as pessoas serão transparentes.Assim fez-se a luz, na imagem de mim mesmo que se transformou em Deus.Transparentemente,  algo ausente, como sempre.

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