Um
tanto desenxabido, peço uma cerveja, a madrugada meio fria lá fora.Uma ou outra
discussão; houve confusão e briga, agitação de reivindicação, passeata,
bomba.Hoje, outro dia, outra madrugada em que me encontro com os próprios
botões, devidamente perfilados pela indiferença da luz lunar.A noite, seus
tipos de noite, roupas de noite, figuras marcadas do exótico ao sereno, do
furioso ao delicado, os tipos da noite embalados por nuvens de cigarro e bafio
de álcool.E eu, mais uma criatura do orquideário noctívago; eu, de tantas horas
de pouco sono - sabe lá a hora em que ele me abandonará de vez, ou eu me
abandonarei em sonho maior além do próprio estranho sonho da vida -, apenas no
desprendido olhar contemplativo da noite, suas criaturas e os ruídos de abafada
estridência que ecoam por ela.E há as conversas, os homens e suas conversas, os
homens em suas mentiras de reis por instante , as mulheres em suas poses
extemporâneas de princesa por um instante.A vida sempre se fazendo de instantes
que se perdem na instância de todas as coisas.
No
canto do balcão, converso um pouco com a moça que me serve.Súbito, um leve
fastio de tudo, do momento, daquele momento e do momento de tudo do mundo,
invade um pouco o que sobra da alma além da borda do copo.Poderia, penso eu,
acabar-me nesse silêncio contemplativo de nada, do nada que se faz a partir do
oco da noite, do oco do alarido do bar, as pessoas correndo de um lado para o
outro, silhuetas femininas espraiadas do oriente ao ocidente daquele
microcosmo, aquele bar como uma minúscula ameba no organismo do mundo,aquela
luz melancólica que tolda a superfície de todas as coisas e seres de um bar,
uma luz baça como se um verde estranho se acasalasse com tons vermelhos num
cinzento de bruma invisível.A escuridão de fora solidarizada com a de dentro;
que sou aqui, agora, que nada mais que aquele solitário de sempre com que teimo
em solidarizar todo dia, ao despertar de uma labuta que, como toda labuta,
precisa de muita imaginação para ter sentido?Bem, pelo menos, ao retornar,
encontrarei em algum momento o que sobra da imaginação, do sonho de auscultar
algo além da escuridão dessa noite que já passou, na grande noite do cosmo que
me envolve e que continuará além de quando dele eu me for.
Voltarei para casa como sempre, um pouco torporizado pelo vazio de
conversas vazias e de copos esvaziados para encher um pouco mais a alma drenada
por não sei o quê.Assim decorre a noite,
e os dias que se fazem noite, essa realidade que faz a abstração do dia pelos
reflexos da luz do sol.Ganhei e perdi tempo nisso, deveria fazer um saldo que,
por enquanto, me parece um tanto negativo.Nada de novo no front. Pelo menos,
penso, matei um pouco de tempo até tentar fazer as pazes com Morfeu, esse
agiota de meus sentidos desguarnecidos.Uma última cachimbada, e me perder no
traçado de ida ao lar, no rastro desse fumo que lanço ao ar.Estranho me sentir
meio besta, no meio de todas essas coisas bestas.Mas não é vazio, nem náusea ,
nada de abstração filosófica, nenhuma mentalização de misteriosa metafísica
retiradas dos alfarrábios do cérebro.Não passa de simples sensação de
solidão.Somos sempre solitários, mesmo quando não nos imaginamos solitários.
Perdi eu, perdi-me em mim, perdeu-me a noite ou, simplesmente, perdi a
noite?Ah, contabilizar o saldo, contabilizar o saldo...Positivo?Negativo?
Encosto no balcão, à espera de um novo trago que possa me tragar a outra
dimensão diversa desta daqui quando, ao lado, uma moça me lança um leve e
descompromissado sorriso.Um breve momento de sol na secura fria da noite.Em
seguida parte e leva consigo toda uma
imensidade de universo possível e impossível , o qual já se me escapou por entre as mãos.E assim
vai, ela e o calor de seu sorriso que, por instantes, dissolveu a crosta gelada
do coração.Um silêncio estranho então se apossa de mim, em meio à fuzarca
reinante, inebriado ainda com a alvura de seus dentes, as garras da noite em volta, o brilho suave de seu
olhar que jamais retornará aos meus.Vai-se para nunca mais.E a noite foi salva
por causa disso.A noite é simplesmente sempre um sorriso que se perde sem nunca
ter sido pedido.
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