quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

nada contra a transcendência mas...

nada contra a transcendência mas...

   O grande problema da ortodoxia é a intransigência. O ortodoxo( seja de ordem moral, política, religiosa e até sexual) parece que não se satisfaz apenas em ter a sua crença; parece que seu grande prazer é ter que atacar alguém que descrê ou contesta sua crença.Daí que a ortodoxia é o vestibular para o fanatismo.Tudo bem que a vida não basta, pelo menos esta que está aí, onde somos postos sem pedir e dela nos despedimos sem querer.Tudo bem que isso nos leve a buscar, ainda que no imaginário, algo além desse estágio d’aquém sonho que chamamos de realidade. Mas ninguém é obrigado a compartilhar os sonhos ou delírios de outro, contra a própria  vontade. Cada um tem direito de criar seu próprio universo emocional, desde que não destrua o de outro ou não choque os cavalos e cachorros com seu comportamento, como dizia Wilde.
    Considero que todas as pessoas, independente de formação cultural ou psicológica, têm alguma necessidade interior - seja ela consciente ou não, deliberadamente crítica ou não – de se orientar, em algumas circunstâncias, para um estágio de transcendência. Pode-se até falar em “instinto” metafísico; sofisticado, se for elaborado filosoficamente, vulgarizado, se manipulado por credos assumidos aprioristicamente por meio das metafísicas e mitologias religiosas.  Em todo caso, a vida, pelo menos essa nossa vida, parece não ser suficiente. E não é mesmo, senão não haveria arte e outras formas ritualísticas dentro da própria vida. Daí não ser absurdo se falar que o homem  é um animal religioso, além de social.
    Contudo, estamos presenciando um constante ataque contra o estado laico.A intolerância de caráter religioso assoma por trás das fileiras do bom senso e da razão, às vezes de forma sutil, em outras de forma explícita. Homofobias  disfarçadas, tentativas da imposição de ensino religioso(leia-se: doutrinação religiosa e não estudo histórico das religiões),proselitismos histriônicos e dogmáticos espalhados por todo lado, sem contar os jogos de cena e oportunismo de políticos sedentos de votos ou apoios, especialmente em épocas de eleição.
     Prezo a tolerância, ainda que meu estômago sofra um bocado com qualquer forma de doutrinação que é perpetrada contra minha pessoa; passei da fase – se é que, em algum momento, passei por alguma- de babar ovo por políticos, deuses, divindades de carne e osso ou não, sejam elas egressas da indústria cultural ou de outras variantes da grande máquina de ilusionismo que pode ser a política ou a religião.À minha imagem e semelhança tive que me recriar por cima dos escombros de mentiras que me foram imputadas em tantas décadas, fossem elas de origens metafísico religiosas ou políticas.Questões de fé sempre são complexas, por mexerem com aquelas regiões de nossa mente que não estão sob  nosso controle. Por sinal: sobre o que temos controle nessa vida? Não vejo lá muita diferença qualitativa,  muito mais quantitativa, entre os que defendem de forma irracional uma causa religiosa ou uma política.A ciência não resolve nem explica tudo, mas pode propiciar uma forma de atuação mais equilibrada de viver nessa beira de abismo por onde se palmilha todos os dias.  Quanto aos fanáticos, quando muito suporto os futebolísticos, já que futebol , felizmente, não tem todo dia.Mas a máquina de vendas de indulgências, textos sagrados de auto-ajuda, camisas ou bobagens de times, mitos políticos falsificados(política é o campo que conglomera os mais eficientes farsantes, grande esteio de venda para comerciantes de óleo de peroba)  é muito bem azeitada e adaptada ao grande esquema do capital.Como figura desadaptada que sou,  voluntariamente, acabo sendo voz discordante - felizmente não a única no planeta, já que aprendi com outros e comigo mesmo a ser desse modo -,a provar às minhas fatalidades pessimistas que a humanidade não se perdeu de todo.
     Sou agnóstico , por convicção filosófica, mas tolerante, por convicção de sobrevivência. Por enquanto sou obrigado a viver no meio de gente, sou condenado a isso...Afinal, vivo em sociedade, posso não ser regido por mitologias(exceto as que eu mesmo crio para mim), mas sei do quanto essas , mitologias, são necessárias para o equilíbrio emocional de tantos.Há muito tenho a certeza de que é impossível, pelo menos para a maioria das pessoas, viver sem acreditar em algo transcendente, além dessa vida e do vazio que nos cerca,  dos grandes espaços silenciosos do universo que não nos respondem.Nossa finitude, nossa consciência disso, sempre será um tormento, sejamos monoteístas, politeístas, panteístas, o que quer que seja.Mais pesado, óbvio, para quem não acredita em nada disso. Claro que cartilhas, fórmulas prontas e textos sagrado incontestáveis sempre vão ajudar nas ardências dessas feridas existenciais.
     Há muitas formas de religiosidade, tantas quanto a variedade de diversidades existentes na espécie humana. Daí eu não acreditar na possibilidade de toda a humanidade se sentir uma coisa una, dadas tantas diferenças de costumes, valores e estruturas psicológicas, tanto nacionais como individuais. Ainda que os problemas essenciais, principalmente os que envolvem amor ou morte, sejam aparentemente os mesmos para todos, supomos ser entidades únicas, totalmente diferenciadas. A única realidade, de fato, é a psicológica, nossos limites são definidos por nossos sentidos, não somos uma entidade espacial e abstrata separada das percepções e das impressões que nos colocam em contato com o mundo material; ainda que o termo matéria já não seja suficiente para explicar tudo sob a ótica da ciência moderna. O mundo sempre pode se tornar em algo estranho, basta um impacto psicológico qualquer, um detalhe que modifique o que é usual para nós no cotidiano. A alma gêmea de ontem pode ser o estranho de hoje .O próprio espelho: o que ele reflete além do espectro luminoso reconstruído pela nossa mente, quem é esse que vislumbro todos os dias ao escovar os dentes?
      Daí a busca num sentido de inteligência e vontade superior, além dos limites de nossa finitude tão mediocremente humana.E nem sempre o livre arbítrio age nisso, seres condicionáveis por ilusões e pressões alheias que somos, argila de sentimento e razão moldável muitas vezes por instintos escultóricos não muito estéticos, muito menos éticos...
     Em todo caso, nosso imaginário é sempre mais amplo, não há limite para o devaneio humano, tanto quanto para sua estupidez ou vaidade. Por isso evito o contestar de forma ridicularizante, com relação a  crenças alheias, exceto se elas interferem na minha liberdade e na de outros, se atuam no sentido da injustiça e do absurdo pleno. É sempre melhor argumentar, ainda que a maioria seja incapaz disso ,por preguiça ou por simples inépcia.Sou condenado a acreditar na razão como única forma de contornar o poço de irracionalidade onde chafurda a nossa existência, tanto individual quanto  coletiva.Acho mesmo, concordando com o velho Freud, que a religião é uma forma de neurose obsessiva universal, algo nada surpreendente num mundo de loucos onde se varia apenas o grau da loucura Mas não vejo como fugir disso dentro do mundo em que vivemos.Afinal, o mundo nunca será uma academia de Atenas com sábios em busca da verdade além das sombras que nos envolvem. O mundo sempre será, isso sim, essa nave oscilante no caos oceânico do universo, lapso de vida e existência num  cosmo que nos é indiferente, a não ser para os que crêem na sabedoria e justiça de um ser superior e universal, o grande sabe tudo e manda chuva das hostes universais.Para quem que, como eu,  não acredita nisso, sobra o momento, o presente, essa única realidade que desconfio estar ao meu alcance.Com ressalvas, claro.A transcendência é sempre imaginária; pode ocorrer que traços de nossa presença em vida continuem após  a nossa morte.Se eles forem úteis para outros, de uma forma ou outra, até que podemos dizer ter tido uma vida significativa.Talvez isso já se dê, em parte, na medida em que se ame algo durante nossa curta jornada nesse elipsóide que gira em torno desse sol fenecente. As circunstâncias sempre nos envolvem. Seria o nosso destino algo já pré-determinado? Ou tudo volta sempre ao que se era, o mundo sendo uma grande engrenagem cíclica, uma neurose cósmico-planetária? Ainda que não tenha a resposta, resposta esta que certamente nunca terei, não sou obrigado a engolir a dos outros, sem prova ou nada parecido. Assim como respeito a sua fé, espero que respeite a ausência disso. Mas isso já seria ser tolerante, exercício este não muito praticado no cotidiano, nem ao menos em pequenas coisas, o que se dirá com coisas que mexem com o medo da morte e do nada.

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