O grande problema da ortodoxia é a
intransigência. O ortodoxo( seja de ordem moral, política, religiosa e até
sexual) parece que não se satisfaz apenas em ter a sua crença; parece que seu
grande prazer é ter que atacar alguém que descrê ou contesta sua crença.Daí que
a ortodoxia é o vestibular para o fanatismo.Tudo bem que a vida não basta, pelo
menos esta que está aí, onde somos postos sem pedir e dela nos despedimos sem
querer.Tudo bem que isso nos leve a buscar, ainda que no imaginário, algo além
desse estágio d’aquém sonho que chamamos de realidade. Mas ninguém é obrigado a
compartilhar os sonhos ou delírios de outro, contra a própria vontade. Cada um tem direito de criar seu
próprio universo emocional, desde que não destrua o de outro ou não choque os
cavalos e cachorros com seu comportamento, como dizia Wilde.
Considero
que todas as pessoas, independente de formação cultural ou psicológica, têm
alguma necessidade interior - seja ela consciente ou não, deliberadamente
crítica ou não – de se orientar, em algumas circunstâncias, para um estágio de
transcendência. Pode-se até falar em “instinto” metafísico; sofisticado, se for
elaborado filosoficamente, vulgarizado, se manipulado por credos assumidos
aprioristicamente por meio das metafísicas e mitologias religiosas. Em todo caso, a vida, pelo menos essa nossa
vida, parece não ser suficiente. E não é mesmo, senão não haveria arte e outras
formas ritualísticas dentro da própria vida. Daí não ser absurdo se falar que o
homem é um animal religioso, além de
social.
Contudo, estamos presenciando um constante ataque contra o estado
laico.A intolerância de caráter religioso assoma por trás das fileiras do bom
senso e da razão, às vezes de forma sutil, em outras de forma explícita. Homofobias disfarçadas, tentativas da imposição de
ensino religioso(leia-se: doutrinação religiosa e não estudo histórico das
religiões),proselitismos histriônicos e dogmáticos espalhados por todo lado,
sem contar os jogos de cena e oportunismo de políticos sedentos de votos ou
apoios, especialmente em épocas de eleição.
Prezo
a tolerância, ainda que meu estômago sofra um bocado com qualquer forma de
doutrinação que é perpetrada contra minha pessoa; passei da fase – se é que, em
algum momento, passei por alguma- de babar ovo por políticos, deuses,
divindades de carne e osso ou não, sejam elas egressas da indústria cultural ou
de outras variantes da grande máquina de ilusionismo que pode ser a política ou
a religião.À minha imagem e semelhança tive que me recriar por cima dos
escombros de mentiras que me foram imputadas em tantas décadas, fossem elas de
origens metafísico religiosas ou políticas.Questões de fé sempre são complexas,
por mexerem com aquelas regiões de nossa mente que não estão sob nosso controle. Por sinal: sobre o que temos
controle nessa vida? Não vejo lá muita diferença qualitativa, muito mais quantitativa, entre os que defendem
de forma irracional uma causa religiosa ou uma política.A ciência não resolve
nem explica tudo, mas pode propiciar uma forma de atuação mais equilibrada de
viver nessa beira de abismo por onde se palmilha todos os dias. Quanto aos fanáticos, quando muito suporto os
futebolísticos, já que futebol , felizmente, não tem todo dia.Mas a máquina de
vendas de indulgências, textos sagrados de auto-ajuda, camisas ou bobagens de
times, mitos políticos falsificados(política é o campo que conglomera os mais
eficientes farsantes, grande esteio de venda para comerciantes de óleo de
peroba) é muito bem azeitada e adaptada
ao grande esquema do capital.Como figura desadaptada que sou, voluntariamente, acabo sendo voz discordante -
felizmente não a única no planeta, já que aprendi com outros e comigo mesmo a
ser desse modo -,a provar às minhas fatalidades pessimistas que a humanidade
não se perdeu de todo.
Sou
agnóstico , por convicção filosófica, mas tolerante, por convicção de
sobrevivência. Por enquanto sou obrigado a viver no meio de gente, sou
condenado a isso...Afinal, vivo em sociedade, posso não ser regido por
mitologias(exceto as que eu mesmo crio para mim), mas sei do quanto essas ,
mitologias, são necessárias para o equilíbrio emocional de tantos.Há muito
tenho a certeza de que é impossível, pelo menos para a maioria das pessoas,
viver sem acreditar em algo transcendente, além dessa vida e do vazio que nos
cerca, dos grandes espaços silenciosos
do universo que não nos respondem.Nossa finitude, nossa consciência disso,
sempre será um tormento, sejamos monoteístas, politeístas, panteístas, o que
quer que seja.Mais pesado, óbvio, para quem não acredita em nada disso. Claro que
cartilhas, fórmulas prontas e textos sagrado incontestáveis sempre vão ajudar
nas ardências dessas feridas existenciais.
Há
muitas formas de religiosidade, tantas quanto a variedade de diversidades
existentes na espécie humana. Daí eu não acreditar na possibilidade de toda a
humanidade se sentir uma coisa una, dadas tantas diferenças de costumes,
valores e estruturas psicológicas, tanto nacionais como individuais. Ainda que
os problemas essenciais, principalmente os que envolvem amor ou morte, sejam
aparentemente os mesmos para todos, supomos ser entidades únicas, totalmente
diferenciadas. A única realidade, de fato, é a psicológica, nossos limites são
definidos por nossos sentidos, não somos uma entidade espacial e abstrata
separada das percepções e das impressões que nos colocam em contato com o mundo
material; ainda que o termo matéria já não seja suficiente para explicar tudo
sob a ótica da ciência moderna. O mundo sempre pode se tornar em algo estranho,
basta um impacto psicológico qualquer, um detalhe que modifique o que é usual
para nós no cotidiano. A alma gêmea de ontem pode ser o estranho de hoje .O
próprio espelho: o que ele reflete além do espectro luminoso reconstruído pela
nossa mente, quem é esse que vislumbro todos os dias ao escovar os dentes?
Daí a busca num sentido de inteligência e vontade superior, além dos
limites de nossa finitude tão mediocremente humana.E nem sempre o livre
arbítrio age nisso, seres condicionáveis por ilusões e pressões alheias que
somos, argila de sentimento e razão moldável muitas vezes por instintos
escultóricos não muito estéticos, muito menos éticos...
Em
todo caso, nosso imaginário é sempre mais amplo, não há limite para o devaneio
humano, tanto quanto para sua estupidez ou vaidade. Por isso evito o contestar
de forma ridicularizante, com relação a crenças alheias, exceto se elas interferem na
minha liberdade e na de outros, se atuam no sentido da injustiça e do absurdo
pleno. É sempre melhor argumentar, ainda que a maioria seja incapaz disso ,por
preguiça ou por simples inépcia.Sou condenado a acreditar na razão como única
forma de contornar o poço de irracionalidade onde chafurda a nossa existência,
tanto individual quanto coletiva.Acho
mesmo, concordando com o velho Freud, que a religião é uma forma de neurose
obsessiva universal, algo nada surpreendente num mundo de loucos onde se varia
apenas o grau da loucura Mas não vejo como fugir disso dentro do mundo em que
vivemos.Afinal, o mundo nunca será uma academia de Atenas com sábios em busca
da verdade além das sombras que nos envolvem. O mundo sempre será, isso sim,
essa nave oscilante no caos oceânico do universo, lapso de vida e existência
num cosmo que nos é indiferente, a não
ser para os que crêem na sabedoria e justiça de um ser superior e universal, o
grande sabe tudo e manda chuva das hostes universais.Para quem que, como
eu, não acredita nisso, sobra o momento,
o presente, essa única realidade que desconfio estar ao meu alcance.Com
ressalvas, claro.A transcendência é sempre imaginária; pode ocorrer que traços
de nossa presença em vida continuem após
a nossa morte.Se eles forem úteis para outros, de uma forma ou outra,
até que podemos dizer ter tido uma vida significativa.Talvez isso já se dê, em
parte, na medida em que se ame algo durante nossa curta jornada nesse elipsóide
que gira em torno desse sol fenecente. As circunstâncias sempre nos envolvem. Seria
o nosso destino algo já pré-determinado? Ou tudo volta sempre ao que se era, o
mundo sendo uma grande engrenagem cíclica, uma neurose cósmico-planetária? Ainda
que não tenha a resposta, resposta esta que certamente nunca terei, não sou
obrigado a engolir a dos outros, sem prova ou nada parecido. Assim como
respeito a sua fé, espero que respeite a ausência disso. Mas isso já seria ser
tolerante, exercício este não muito praticado no cotidiano, nem ao menos em
pequenas coisas, o que se dirá com coisas que mexem com o medo da morte e do
nada.