Modi
falsificado!
Ainda não tive quadro falsificado, não
cheguei a tanto.Mas já tive quadro roubado: era minha primeira exposição , na
USP e em centro acadêmico, mais de trinta anos atrás; dois quadros(toscos,
confesso!) foram subtraídos, talvez em função do Residencial da
Universidade(CRUSP) ter sido na época invadido, com apartamentos em estado
precário,muitos buracos...
A exposição ,que ora se encerra na
capital, com obras, fotos e documentos de Modigliani, em plenas searas do Masp
e com muito alarde, tem agora a acusação de ter uma das telas do pintor, por lá
apresentadas, sob suspeita de
falsificação, tendo participação nisso, segundo acusadores, o próprio curador
principal da exposição , Christian Parisot, autor de muitos estudos sobre o
pintor italiano, inclusive de uma biografia que li e gostei.Um colecionador apontou o
quadro como falso, após uma exposição no Museu Pushkin, de Moscou.A
Sotheby’s, mais prestigiosa casa de
leilões do mundo, não abalizou a obra para venda.Marc Restellini, diretor da
Pinacothèque de Paris, afirma que o
Parisot é um bucaneiro das artes.Pronto,está armado o barraco!Ou barracão, já
que exposição foi realizada com alta promoção, captação de verba pública e
co-curadoria brasileira.Agora vem a suspeita.Muito especialista brigando,
nenhum artista falando: o ideal seria que houve um contemporâneo do artista
para dar um palpite, mas ele já estaria
um tanto provecto demais para isso...Por sinal, esse tipo de celeuma é muito comum quando se envolve arte moderna de
mestres do século vinte, já que ela,arte moderna, quantitativamente acaba sendo
a mais cheia de falsificações.Nesse mundo das artes, tem muito crítico que
briga com outro crítico, muito curador em guerra contra outras curadorias,
muito dono da verdade, como sacerdotes de uma religião, testamenteiros
verdadeiros de uma fé estética.E muito dinheiro envolvido.Qualquer grande
exposição, atualmente, envolve muita grana e muita possibilidade de um lucro
pouco fácil de ser visualizado.No passado, na gloriosa Paris dos artistas pobres, muitas vezes eram
improvisadas em café e botecos.Mas isso não tem importância:afinal, a arte é um
grande templo, os artistas suas dividades; seus discípulos e adoradores seus
fiéis e, muitas vezes, seus críticos ,os epígonos ,de certa maneira.E como em
toda religião, muito picareta.Que fazer?
No passado, os grandes mestres adestravam
seus discípulos com tamanha habilidade, para a continuidade e acabamento de
suas obras que, com o passar do tempo,
obras dos discípulos acabavam por ser tidas como dos
próprios mestres.Hoje em dia, com os novos testes químicos ou de ressonância,
aliados aos pareceres de especialistas e historiadores, torna-se mais fácil a
dissipação de dúvidas.De bom alvitre, costuma-se não se colocar em
exposição obras em dúvida ou mergulhadas
em suspeitas, quando muito colocando-se que as mesmas são “atribuídas” ao
artista.As questões políticas ou econômicas, de poder ou jogo de poder, de
vaidades e influência, tudo isso contribui para uma barafunda quando surgem
acusações de falsificação.Provavelmente, há muita falsificação de grande
artista por aí.No passado, o copismo era uma atividade comum, não ilegal; são
comuns os casos de copistas que acabaram por se tornar artistas autônomos, até
mesmo grandes.Contudo, com o surgir do modernismo e da afirmação estilística
individual, conjuntamente com o novo papel econômico do que passou a ser
chamado de mercado de arte – coisas sem dúvida ligadas aos processos de
alienação e “reificação” do capitalismo moderno – o “negócio” arte passou a envolver muita grana e a falsificação
passou a ser uma atividade, marginal e considerada criminosa, também rentável.Muito!Daí
o surgimento das comissões com nomes dos artistas,de preferência com os gajos
criadores mortos, destinadas à verificação de autenticidade das suas obras.O próprio
Picasso, por exemplo, tinha certeza de que havia muitas falsificações suas no
mercado; divertia-se com isso, principalmente quando lhe apresentavam uma obra
para que ele a confirmasse como sua e ele, marotamente, dizia estar em dúvida
sobre o quadro, o que devia produzir um terrível frio na espinha do
proprietário da mesma.
Um famoso falsificador, já morto e que
inclusive participou de um filme de Orson Welles(Verdades e Mentiras, no título
brasileiro), dizia ter falsificado muitos Modis, dizendo-se um continuador da
obra do italiano que, segundo ele,
pintou pouco porque viveu pouco e bebia muito.Isso até que seria
aceitáve, se ele, falsificador, não tivesse
recebido uma grana preta pelas “continuidades”, que lhe propiciava, inclusive, vida de fausto
que nunca foi experimentado pelo próprio Modigliani em vida, muito ao
contrário.Com isso estamos dentro do campo movediço do que se chama ética.Mas são coisas de dinheiro, coisas dos
absurdos da vida, pouco tendo a ver com a arte mesmo, essa sim a afirmação da vontade e da imaginação do
homem frente ao caos do universo que o envolve.O resto é grana, futrica, luta
por poder, partilha de herdeiros, mesquinharias que pouco têm a ver com a arte
em si.
Sinceramente, se alguém me falsificar no
futuro(o que acho pouco provável por ter certeza de minhas limitações reais),
igualando no plano técnico e concreto , as mesmas preocupações estéticas ,
sensoriais e emocionais que desenvolvi ao longo da vida, mantendo o tal do
estilo(de maneira não tosca ou vulgarizada!), ficarei honrado.Mas, por favor e
de preferência, não falsifiquem a assinatura que, por sinal, é muito fácil de
ser feita.Como sou um farsante de mim mesmo....Claro, tem colega meu que me
enforcaria por falar isso!
Na arte oriental era comum gerações de
artistas que repetiam o estilo, a feitura, motivação e filosofia de mestre
originais,mantendo os parâmetros técnico-estilísticos, naquela maravilhosa e poética paisagística chinesa ou
japonesa.Mas eles se diziam discípulos, tinham orgulho disso, era sua função
social e artística na estrutura
social.Não assinavam as obras, mas todos
sabiam que era obra do discípulo tal de tal artista.Maravilha!
O Modi que vi no Masp, não sei se
falsificado ou não, retocado ou não, é assinado e mostrado como
original.Confesso que gostei dele, ainda que na exposição o meu preferido seja
, curiosamente, um Modi que faz parte do acervo do Masp.Se é falsificação, quem
a fez, pelo menos, gostava muito do mestre(que , por sinal, nunca em vida vez
pose de mestre): não dá para falsificar bem um moderno sem captar a emoção do
original!Modigliani era muito dotado no desenho, na linha e na técnica do
alla-prima.Era eclético na técnica de pincelada, no traço e nos empastes.Um
espírito clássico, elegante, melancólico e intenso ao mesmo tempo.Já tentei,
várias vezes, repetir suas texturas adamascadas em nus e nunca
consegui.Que pretensão minha!!Talvez eu
devesse beber mais ao ponto de cair na sarjeta .A linha de Modi é maravilhosa: copiar um desenho dele
é emocionante, fazer um original no mesmo estilo, dificílimo, praticamente
impossível.Porque nunca haverá dois Modis!A linha é melódica, fluida e
delicada, além de viril!
Bem, quem o falsificar, que pelo menos
respeite tudo isso na feitura da obra.Se vai ganhar dinheiro, se outros vão
ganhar, isso não mexe em nada, não interfere no valor e no legado da não vasta
mas segura e intensa obra do italiano.Esse reside em seus restos silenciosos,
junto aos também silenciosos restos de sua jovem e amada esposa e segundo
filho.Mas os sonhos de beleza e amor, que custaram tanto materialmente, tão
dolorosos e gratificantes, tudo aquilo que fez a carne de sua vida, o espírito
de seu legado, isso continua vivo, em estrondo e também em silêncio. O resto é mesquinharia de grana e prestígio,
vaidade, sabe-se lá o que mais. Que as comissões decidam e que Modi se
refestele com tudo isso no céu, se ele
houver.Não haveria lugar melhor para ele que passou pelo inferno aqui da terra.