terça-feira, 26 de julho de 2016

Anarquismo em Pessoa.Ou seria panteísmo?

O nome do texto de Pessoa é Anarquismo.Poderia muito bem chamar-se panteísmo.Ou budismo, “extensionalismo” ou coisa semelhante.É uma visão bem moderna, bem dentro dos parâmetros de referência da ciência moderna, a partir da relação tempo espaço que saiu dos marcos newtonianos ou aristotélicos.Extrai-se disso a banalidade na crença na intemporalidade do ego.Este seria mais adequado à atemporalidade, dado que nossa vida é apenas um momento dentro do grande fluxo cósmico onde representamos menos de um suspiro.Quem sabe a mesma forma intuitiva que fez Freud entender o ego como uma camada de um “eu” prisioneiro de uma dualidade de impulsos(instintos?) entre vida e morte, amor e ódio, anabolismo e catabolismo.A única certeza seria a de que, de uma maneira ou outra, nosso destino seria mesmo o Nirvana?
    O que somos é fruto de nossos atavismos, físicos e culturais.A humanidade é como um grande organismo do qual fazemos parte, frágeis, ainda que essenciais, células votadas à finitude, renovando e recebendo o plasma de informação ou matéria(matéria?) com que se renova esse espírito de sonho de eternidade que, no fundo, não passa de silêncio e dúvida.Que bela reflexão essa   de Pessoa sobre o que é ele dentro dessa grande interrogação no tempo e no espaço que expressa nossa condição humana.  Em seguida, o texto.



ANARQUISMO
A Noite e o Caos são parte de mim. Dato do silêncio das estrelas. Sou o efeito de uma causa do tempo do Universo [e que o excede, talvez]. Para me encontrar tenho de me procurar nas flores, e nas aves, nos campos e nas cidades, nos actos, nas palavras e pensamentos dos homens, na luz do sol e nos escombros esquecidos de mundos que já pereceram.
Quanto mais cresço, menos sou eu. Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho. Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus.
Na minha presença hodierna têm parte as idades anteriores à Vida, os tempos mais antigos do que a Terra, os ocos do espaço antes que o mundo fosse.
Na noite onde nasceram as estrelas comecei a constelar-me de ser.
Não há um único átomo da mais longínqua estrela que não colaborasse no meu ser.
Porque Afonso Henriques existiu, eu sou. Porque Nun'Álvares combateu, existo. Seria outro - não serei, portanto - se Vasco da Gama não tivesse achado o Caminho da Índia nem Pombal tivesse governado (...) anos.
Shakespeare é parte de mim. Para mim trabalhou Cromwell quando arquitectou a Inglaterra. Ao ganhar com Roma, Henrique Oitavo fez-me ser hoje o que eu sou.
Para mim pensou Aristóteles e cantou Homero. Neste sentido místico e profundo deveras [...], Cristo morreu por mim. Um místico índio que eu não sei se existiu, há 2000 anos colaborou no meu ser actual. Pregou moral Confúncio à minha presença de hoje. O primeiro homem que achou o fogo, o que inventou a roda, o primeiro que ideou a seta - se hoje eu sou eu é porque eles existiram.


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