O nome do
texto de Pessoa é Anarquismo.Poderia muito bem chamar-se panteísmo.Ou budismo, “extensionalismo”
ou coisa semelhante.É uma visão bem moderna, bem dentro dos parâmetros de
referência da ciência moderna, a partir da relação tempo espaço que saiu dos
marcos newtonianos ou aristotélicos.Extrai-se disso a banalidade na crença na intemporalidade
do ego.Este seria mais adequado à atemporalidade, dado que nossa vida é apenas
um momento dentro do grande fluxo cósmico onde representamos menos de um
suspiro.Quem sabe a mesma forma intuitiva que fez Freud entender o ego como uma
camada de um “eu” prisioneiro de uma dualidade de impulsos(instintos?) entre
vida e morte, amor e ódio, anabolismo e catabolismo.A única certeza seria a de
que, de uma maneira ou outra, nosso destino seria mesmo o Nirvana?
O que somos é fruto de nossos atavismos,
físicos e culturais.A humanidade é como um grande organismo do qual fazemos
parte, frágeis, ainda que essenciais, células votadas à finitude, renovando e
recebendo o plasma de informação ou matéria(matéria?) com que se renova esse
espírito de sonho de eternidade que, no fundo, não passa de silêncio e
dúvida.Que bela reflexão essa de Pessoa sobre o que é ele dentro dessa
grande interrogação no tempo e no espaço que expressa nossa condição
humana. Em seguida, o texto.
ANARQUISMO
A Noite e o Caos são parte de mim. Dato
do silêncio das estrelas. Sou o efeito de uma causa do tempo do Universo [e que
o excede, talvez]. Para me encontrar tenho de me procurar nas flores, e nas
aves, nos campos e nas cidades, nos actos, nas palavras e pensamentos dos
homens, na luz do sol e nos escombros esquecidos de mundos que já pereceram.
Quanto mais cresço, menos sou eu.
Quanto mais me encontro, mais me perco. Quanto mais me sinto mais vejo que sou
flor e ave e estrela e Universo. Quanto mais me defino, menos limites tenho.
Transbordo Tudo. No fundo sou o mesmo que Deus.
Na minha presença hodierna têm parte as
idades anteriores à Vida, os tempos mais antigos do que a Terra, os ocos do
espaço antes que o mundo fosse.
Na noite onde nasceram as estrelas comecei
a constelar-me de ser.
Não há um único átomo da mais longínqua
estrela que não colaborasse no meu ser.
Porque Afonso Henriques existiu, eu
sou. Porque Nun'Álvares combateu, existo. Seria outro - não serei, portanto -
se Vasco da Gama não tivesse achado o Caminho da Índia nem Pombal tivesse
governado (...) anos.
Shakespeare é parte de mim. Para mim
trabalhou Cromwell quando arquitectou a Inglaterra. Ao ganhar com Roma,
Henrique Oitavo fez-me ser hoje o que eu sou.
Para mim pensou Aristóteles e cantou Homero. Neste
sentido místico e profundo deveras [...], Cristo morreu por mim. Um místico
índio que eu não sei se existiu, há 2000 anos colaborou no meu ser actual.
Pregou moral Confúncio à minha presença de hoje. O primeiro homem que achou o
fogo, o que inventou a roda, o primeiro que ideou a seta - se hoje eu
sou eu é porque eles existiram.