Há alguma
coisa estranha que identifico como uma espécie de necrofilia emotiva em
relacionamentos antigos, sejam eles simples amizade ou amor. Pegue-se dois amigos
que há muito não se encontram , ficam os dois a trocar enxurradas de novas
informações e, de repente não mais que de repente, está um deles lembrando de
algum evento específico vivido pelos dois, aquela moça que conheciam e que fez
aquilo, aquele momento de bebedeira, recordações sexuais de cunho duvidoso,
relembrança de antigas mentiras que um contava para o outro como sendo verdades(e
ainda teimando em afirmá-las como verdadeiras)coisas assim e assado, um nó no
tecido do tempo , o mesmo tempo que já lançou os dois para muito longe daquele
nó. Como bem disse Rubem Braga numa crônica, saímos do campo da amizade e
entramos na necrologia. Afinal, os dois que viveram aquele nó não existem mais,
talvez exista certa matriz física e emocional que, datada de muito mais tempo
atrás, tenha feito, junto com o acaso, aqueles dois tecerem o nós. Matriz, por
sinal, já desgastada pelo uso natural, pelo desuso natural também. Mesmo
indomável, a alma também envelhece. O
passado é como um país estrangeiro que visitamos, onde falávamos a língua nativa
e a esquecemos, onde se perderam todas as rotas de viagem para lá, uma viagem
feita sem bilhete de retorno. A tendência de apego ao passado é tirânica,
talvez fruto de fixações neurótico afetivas, tema muito bem estudado por
psicanalistas ao longo da história, coisas da infância, etc. Tudo envelhece a
passa, apenas os momentos de plenitude nos dão a vaga ideia de eternidade,
coisa que não é feita para nós humanos, apesar de todo esforço da ciência. Como
os relacionamentos humanos sempre se desenvolvem dentro de uma nau em constante
adornar que chamamos destino, não é leviano afirmar que todos temos vocação
para náufragos em nossas próprias vidas. Procurar antigas amizades às vezes me
lembra o desesperado aceno do náufrago que enseja alcançar alguma ilha de
consolo contra a solidão. Esquecendo que o estranhamento é tônica dominante, procuramos a identificação
em fatos mortos, em imagens de figuras mortas- ainda que fisicamente vivas- que
podem ser antigos amigos ou amores. No mundo moderno, torna-se mais fácil essa “arqueologia
histórico-emotiva” através de redes sociais ou coisas assim. Mais fácil ser
detetive hoje que nas épocas do inglês fumando cachimbo. A tecnologia facilita
mas não aproxima necessariamente as pessoas. A imagem, a imagem é sempre algo
menos do que se imagina. Se não
relativizamos o passado corremos o risco de afundar no lodo impreciso de
injunções fatalistas ou demoníacas.As pessoas se cruzam e se perdem, fica o
momento, o resto sempre um conjunto de lembranças, metamorfoseados em nossas
próprias emoções, nunca poderemos ter o esplendor vivido no passado porque o passado
sempre é um cadáver do qual mantemos os
ossos, o futuro um conjunto de possibilidade e apenas uma certeza, depois de
pagarmos nosso tributo a Caronte.
No cinema sentimental funciona o mito de
antigos amores revividos.Ainda não se descobriu, no entanto, a técnica de
ressurreição que deixasse de produzir zumbis com algum cheiro estranho.
Todo mundo que já sofreu por amor imagina
que aquela dor será eterna. Ledo engano: eterna mesmo-relativizando, como
sempre o termo, pouco afeito a realidade material humana- será a neurose que
produziu aquela estranha fixação numa dor. O romantismo talvez não passe de uma
patologia, onde aprendemos a lidar com as causas, sintomas, efeitos, dentro de
um quadro que, idealisticamente e ilusoriamente, pode ser desenvolvido de forma
pragmática. Pode ser que tudo não passe de ilusão e neurose; pode ser que a
atração e repulsão, medo e identificação, alegria e sofrimento, tudo isso
chamemos de amor. Pelo menos de um tipo de amor. Ou neurose, sei lá. Para tal
coisa existem vários institutos médico-legais de ordem psicológica, religiosa,
etc. Cada um se ajeita como pode. Nada é eterno, muito menos sentimentos que se
dissiparam fisicamente de forma fácil,
muitas vezes transformando prazer em dor e vice-versa, tendo em vista
tanto sado masoquismo espalhado por aí.
Por isso, talvez não se ame algo ou alguém
eternamente por impossibilidade de dilatação temporal( na nossa dimensão, não
em outra relativisticamente concebida).Podemos sim amar, eternamente, o amor
que tínhamos por algo ou alguém. Mas isso mesmo deixa de ser amor se não virar
outra forma de amor, da maneira que for possível. Senão a morte, habitando tudo
inclusive nosso interior, vem e toma conta de tudo.E passamos, além de cultivar
zumbis, a nos transformar em autênticos zumbis- tecnocratizados, se diga, a bem
da verdade-, mas tão primitivos como os
de sempre.
Por certo, a única verdade, além da morte é
o mistério que carregamos até nosso silêncio final.
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